domingo, 23 de setembro de 2007

Memórias da música popular

Escrever sobre memórias musicais, com referências a gostos particulares pode ser ingrato e sujeito às imprecisões diacrónicas.

A memória mais remota que alcanço, em matéria musical reconhecida, são os primeiros anos dos sessenta.

Em 1964, 65 e 66, ouvia-se na rádio e em discos single, as canções de Roberto Carlos, brasileiro que popularizava em quadras redondas, trivialidades e até o amor para efeitos comerciais. O Calhambeque e Namoradinha de um amigo meu, foram músicas que lembro bem.

Incontornável nessa época, era também a música popular do Conjunto António Mafra, com uma série de êxitos continuados e de alto valor artístico, nos estreitos parâmetros que a música folclórica de viras, marchas e chulas, permite. As letras eram de sabor popular e brejeiro, mas de graça certa. O carteiro, O vinho da Clarinha, Sete e pico e Ora vejam lá, são êxitos de sempre, na música popular portuguesa.

Outro êxito retumbante da época foi Ó tempo volta p´ra trás, cantado por António Mourão.

Em 1966, os espanhóis Los Bravos, cantavam Black is Black. A rádio de então passava mais música do mundo do que hoje acontece. E por isso, ouvia-se Adamo, Christophe ( Aline), algumas canções italianas e arremedos de outras músicas que eram a modernidade nos hit parades de então.

Naquele ano de 1966, na música popular de origem inglesa e americana, então já importante no mercado português, através das maiores editoras, produziram-se muitos e bons trabalhos. Por exemplo, saíram nesse ano, os discos Blonde on Blonde de Bob Dylan; Pet Sounds dos Beach Boys e Sounds of Silence de Simon & Garfunkel .

Nenhum desses trabalhos, ou até mesmo o nome dos artistas era uma referência familiar, mesmo vagamente, embora mais tarde os viesse a considerar como obras primas, em função do conhecimento e do aperfeiçoamento do gosto.

Porém, se ouvisse um programa de rádio que passava no Rádio Clube Português, chamado “Em Órbita” e que começara em 1 Abril de 1965, apresentado por Jorge Gil, era mais que provável ouvir todos esses artistas, pois era também o único programa da rádio portuguesa em que tal seria possível..

Por essa ocasião, e no ano de 1967, já Sandie Shaw, de cabelos negros lisos e descalça, cantara Puppet on a string no festival da Eurovisão, uma canção pop que a ninguém deixara indiferente e o país já vira e ouvira Eduardo Nascimento, cantar O vento mudou com que ganhou o festival da canção nacional desse ano.

No Verão de 1967, começou a ouvir-se uma música chamada Whiter Shade of Pale do grupo inglês Procol Harum e que começava com uns acordes de órgão Hammond, baseados num andamento de uma cantata de Bach e uma outra fez o pleno do Verão. Em Julho, Scott Mckenzie cantava San Francisco , canção que celebrava o flower power e o movimento hippie.

Em 1967, os Beatles eram célebres, mesmo em Portugal, sendo bem conhecida a canção “Yellow Submarine”, do álbum Revolver de Agosto de 1966, reeditada em 1969 no álbum do mesmo nome, mas o que era sem dúvida marcante era a frase que um deles ( John Lennon), em Julho de 1966 tinha dito no sentido de serem naquela altura mais populares que Jesus Cristo.

Era uma blasfémia, imperdoável. Aliás, o escândalo tinha sido grande em todo o mundo e na América tinha havido alguns autos de fé em que se queimaram coisas alusivas ao grupo.

A música dos Beatles, no entanto, era um fenómeno que por sua vez se tornava secundário relativamente aos epifenómenos que suscitava, ligados à moda e aos costumes, em evolução acelerada, o que igualmente sucedia, talvez em maior grau com os Rolling Stones, de quem não conhecia nessa altura nenhuma música em particular, e relativamente aos quais só mais tarde veio a apreciar a música, mesmo a desse tempo, como Ruby Tuesday ou She´s a rainbow.

Os Stones diferenciavam-se dos Beatles pela imagem pública de maior rebeldia e confronto com o sistema social então preponderante, mesmo na Inglaterra e na América, de grande conservadorismo nos costumes. Os meios de informação encarregavam-se de alimentar o mito que se foi criando, relatando que os Stones tinham sido vistos a urinar em locais públicos, ostensivamente, como se isso fosse um ultraje inultrapassável à civilização ocidental ou dando conta da maior displicência demonstrada pelos membros do grupo relativamente ao seu público. E no entanto, essa imagem funcionava como apelativa para quem se projectava nessa rebeldia e ambicionava um maior distanciamento da geração precedente.

Algumas canções que se ouviam e alguns desses subprodutos eram extremamente agradáveis ao ouvido e como ainda era custosa a adaptação aos movimentos e à sonoridade acústica e exclusiva das cordas dos violinos, violas e violoncelos, tornava-se muito mais fácil gostar de ouvir Mary Hopkin cantar Those Were the Days ou até Delilah de Tom Jones , para não falar de Hey Jude ou Ob La Di, Ob La Da, dos Beatles.

Em 1968, em Portugal, Marcelo Caetano tomava conta do poder, como presidente do Conselho de ministros; nos USA, em Junho, era assassinado Robert Kennedy e meses antes igual destino tivera Martin Luther King. Em Maio, em França, os estudantes universitários barricaram várias ruas e tentaram a revolução popular, mas em Portugal pouco se falou disso.

Em Portugal, a mudança na chefia do Governo trouxera uma abertura política tímida e um pouco mais de liberdade de expressão. Nada de especial, ainda não era possível criticar abertamente o Governo, mas pelo menos permitiu o surgimento de uma revista ( ainda da Agência Portuguesa de Revistas), quinzenal e chamada Cine Disco, cujo número de estreia apareceu em Dezembro de 1968 e em Agosto de 1969 passou a chamar-se Mundo Moderno. A história da revista, já foi contada, sumariamente, na Portadaloja.

As novas referências implicavam uma alteração qualitativa no gosto por modinhas de hit parade e representavam uma evolução para rock mais inovador, elitista e snob, como era o gosto do apresentador do“ Em órbita” que educou muito ouvinte para a música popular que se produzia fora de Portugal.

1969 foi o ano de descoberta dessa inefável sensação de pertença a uma coisa nova e agradável que se movia com a cultura popular: a música rock.

Em 1969 houve um acontecimento que marcou o ano, no mundo: Em 20 de Julho a nave Apollo 11 chegou à lua e o primeiro homem, Neil Armstrong, pôs lá o pé. O espectáculo começara três dias antes, com o lançamento da nave, na Florida e passou em directo na televisão, a horas tardias e já no dia 21, tendo em conta a diferença horária.

A revista Rolling Stone, criada em 1967 por um estudante universitário, Jann Wenner, em Abril de 1969, escrevia: Quer nos agrade quer não, chegámos a um ponto da história social, cultural, intelectual e artística dos Estados Unidos em que todos vamos ser tocados pela política. Já não podemos ignorá-la . ela ameaça a nossa vida quotidiana, a nossa felicidade quotidiana... Os negros e os estudantes são nossos irmãos e estão a fazer coisas de que temos de ter consciência .

A revista, em 1969, não era ainda conhecida, nem me lembro de a ter visto então, mas iria tornar-se uma das principais fontes de informação sobre a música e a cultura popular americanas e iria proporcionar dos momentos mais duradouros de prazer estético e intelectual, nos anos setenta, ao jovem embasbacado com os seus números quinzenais, em lugares de distribuição seleccionada.

Perante estas mudanças sociais e culturais, já não era mais possível fazer coexistir a música de Beethoven com a dos Beatles, de modo a escolher uma em detrimento doutra. Ainda por cima, o que ouvia cada vez mais, era essa música nova e que permitia uma identificação fácil e imediata com alguns dos valores que veicula e que apesar de não serem todos assimiláveis, por variadas razões, permitem o sonho com outras formas de viver ou a experimentação de outras sensações estéticas até então ignoradas e diferenciadoras da massa anónima.

De repente, a moda começou a transformar-se e as calças de fazenda com dobras em baixo, como se usavam nos anos cinquenta e o meu pai ainda usava, deixaram de ser referência comparativa com o que vinha lá de fora, embora com atraso significativo..

Quanto à música, essa descoberta gradual começou por algumas canções, nem sempre as mais importantes, significativas ou relevantes. Apenas as que melhor entravam no ouvido. Lembro-me de ouvir El condor pasa, de Simon & Garfunkel; uma versão do “hino à alegria” da nona sinfonia de Beethoven, por Waldo de Los Rios; Yester me, yester you, yester day de Stevie Wonder e Wight is Wight, de Michel Delpech e talvez Proud Mary dos Creedence Clearwater Revival..

Mas a par destas canções, fica a memória de grupos como os Archie com Sugar, sugar ou os Shocking Blue, como símbolo de modernidade e cuja imagem tinha mais a ver com a moda lá de fora do que com a música propriamente dita. O grupo não passaria no Em Órbita, de certeza! Nesse caso, o que impressionava era a imagem, de algo inacessível e apelativa e que tinha a ver com mulheres, ainda muito indefinido mas marcante.

Em Agosto do ano de 1969, em Portugal, a pretexto de sexo no cinema, falava-se de um filme especial: “Helga”. Sob a capa do fenómeno da maternidade, havia cenas pouco usuais de nudez feminina. Contudo, a curiosidade dos espectadores, mais voyeurs que outra coisa, saía frustrada porque o filme mostrava essencialmente o acto de dar à luz. Outro filme polémico foi A Piscina, com Romy Schneider e Alain Delon. No fim do ano, ainda a propósito de sexo, a revista Cine Disco, referia-se a um escândalo com o disco de Jane Birkin e Serge Gainsbourg,Je t´aime...moi non plus”. “Lembremos para os nossos leitores que ainda o ignoram que esta canção interpretada por Serge Gainsbourg e Jane Birkin está totalmente proibida ( venda e difusão) na Itália, Espanha e no Brasil. Motivo essencial: as palavras são susbtituídas por suspiros de alcova. A BBC, por seu lado, não passou o disco, por o considerar “unsuitable for playing”, negando assim a censura efectiva. O disco, porém, ainda hoje, não deixa indiferente quem o ouve, devido aos sussurros e suspiros da cantora que simula o acto de fazer amor.

Um filme que marcou a cultura pop, foi estreado em Julho nos USA. Easy Rider, com os actores Peter Fonda e Dennis Hopper como hippies, de mota, a fumar marijuana e a caminho de New Orleans, mostrava Jack Nicholson, no papel de um advogado bêbado. A banda sonora incluía temas de Jimi Hendrix, Steppenwolf e Byrds, para além de outros. A imagem genérica e a iconografia passou como uma das mais influentes do fenómeno hippie e de contracultura que caldeava a música popular, tendo chegado a Portugal os símbolos e a música.

No verão, em Inglaterra e nos EUA , organizaram-se os festivais da ilha de Wight e de Woodstock.

O primeiro contou com a presença de Bob Dylan, já nessa altura uma figura mítica e que foi cabeça de cartaz, apesar de só ter tocado uma hora, o que irritou a assistência, de 150 mil pessoas.

O festival de Woodstock foi o acontecimento desse ano e reuniu no local mais de 400 mil pessoas que mesmo à chuva cantaram e dançaram ao som de Jimi Hendrix, que interpretou o hino Star Spangled Banner; Janis Joplin, The Who, Canned Heat, Creedence Clearwater Revival, Greateful Dead , Crosby Stills Nash & Young que tocavam pela segunda vez em público e Santana que estreou um baterista, Mike Shriever que fez um solo de bateria memorável, tão memorável como a interpretação de Alvin Lee na canção I´m going home.

O festival foi tema de um número especial da revista Life e deu origem a um filme, dos mais conhecidos da música rock. Foi publicitado com o slogan de “Três dias de música e paz ”, o que não deixava de ser irónico, num país que nem um mês antes tinha assistido ao assassinato de seis pessoas ligadas ao cinema, em Beverly Hills, sendo uma delas Sharon Tate, mulher de Roman Polanski,, realizador de um filme estranho, Rosemary´s baby ( O Bébé de Rosemary). Adivinhe-se lá de quem era o bebé?

Os assassinos deixaram escrita a sangue, a palavra “porco”, numa das portas . O principal assassino, soube-se pouco depois, era Charles Manson, de 35 anos, ligado à música e cultura popular. O acontecimento foi amplamente noticiado, até em Portugal, onde a censura ainda existia e apesar de ter abrandado, cuidava particularmente dessas coisas que podiam mexer com sensibilidades.

Neste ambiente de violência, no final do ano, uma outra tragédia veio ensombrar ainda mais o meio musical: em Dezembro, os Rolling Stones decidiram organizar um concerto gratuito para as massas e apoiantes, na sequência do espírito de Woodstock.

Fizeram-no em Altamont, perto de San Francisco, em também entraram os Jefferson Airplane, os Grateful Dead e os Santana. Mais de 300 mil pessoas compareceram e não havia condições por não terem sido preparadas previamente.

Por outro lado , os Stones encarregaram a segurança no recinto ao grupo Hell´s Angels, um gang motorizado e dado à violência. Segundo Keith Richards, um dos elementos dos Grateful Dead tinha-lhe assegurado que o grupo não era muito perigoso e era possível controlar, o que já acontecera em concertos deles.

Apesar disso, as condições para a violência explícita surgiram rapidamente e segundo vários testemunhos atingiu um grau muito elevado, com espancamentos com tacos de bilhar e navalhadas, até que os Stones tocaram Sympathy for the Devil e a partir daí foi o pandemónio.

Um dos presentes, um jovem negro, puxou uma arma e foi imediatamente apunhalado até á morte, na frente de toda a gente.

Essa morte e a demais violência, excessiva e demente, fixou para sempre o fim da era da paz e amor nos concertos rock e na música popular, e Altamont tornou-se um adjectivo dos aspectos negativos do rock, tal como o disse Billy Graham, um promotor de espectáculos, já falecido. Há há um filme, Gimme Shelter, que fixou para sempre essas cenas e a desordem que se instalou.

Mas para além desses episódios trágicos, a música produzida durante o ano, foi verdadeiramente excepcional. A revista Guitar Player, em número especial de 1999, considerou mesmo esse ano de 1969, como o maior para a música rock, em termos estritamente musicais.

Os discos publicados foram tantos, tão bons e tão marcantes que não deixam grandes dúvidas em subscrever essa opinião, embora quase todos fossem ignorados, em detrimento do Sugar Sugar dos Archies ou o tema de amor do filme Romeu e Julieta de Henri Mancini. Mas por cá, já se falava de um grupo belga chamado Wallace Collection que tocava um tema muito passado na rádio: Day dream, com um coro de la la la, deveras cativante. E na música portuguesa, falava-se também do grupo Filarmónica Fraude, composto por seis elementos(1). Era um grupo de música moderna e por isso de culto, para os jovens em busca da novidade e qualidade na música, para além de António Mourão e outros do mesmo género.

Não era fácil com aquela idade e em Portugal, naquele meio, só através do rádio, dominar os fenómenos emergentes na música pop. Nem interessava. Assim, só por uma qualquer circunstância do acaso e talvez por uma curiosidade provocada quem sabe por um poster(2) ou por outro pretexto folclórico, poderia ter ouvido e gostado logo do disco Uncle Meat de Frank Zappa que saiu no mês de Junho desse ano ou até do primeiro disco dos Allman Brothers. Para além desses, saíram durante o ano, inúmeros álbuns de grande qualidade artística, alguns deles publicados em Portugal.

Entre eles, o segundo e terceiro álbuns dos Creedence Clearwater Revival, chamados Bayou Country e Green River. Aquele continha Proud Mary e o refrão “rollin´, rollin´rollin on the river” e a mudança de ritmo que a tornava irresistível como um clássico da música pop e o outro tinha Bad moon risin´e Lodi, do mesmo estilo.

Os CCR foram um dos primeiros grupos que ajudaram a definir o gosto pela música popular americana, antes, ainda, de Have you ever seen the rain.


[1] António Luís Corvelo de Sousa; José João Parracho; José João Pinheiro Brito; António Antunes da Silva; Júlio Vital dos Santos Patroicínio e João Manuel Viegas Carvalho. O tema mais conhecido tinha como refrão: Assim defino a vida de quem tem animais de estimação de vida sã. E em barracas com ar condicionado bichinhos que devoram croissants. Cães com casaquinhos de cambraia e gatos com golinhas de astracan.

[2] Durante os anos sessenta ganhou notoriedade a moda de anunciar os espectáculos com posters cuja concepção ficava muito a dever à Art Nouveau e ao desenho psicadélico das letras que se embrenhavam umas nas outras até se tornarem virtualmente ilegíveis. Os maiores cultores desta arte foram nos USA, Stanley Mouse e Victor Moscoso e mais tarde Rick Griffin e na Inglaterra Michael English.

3 comentários:

MARIA disse...

Nesta viagem que aqui fiz consigo pela música popular, recordei alguns temas que nos ficam no ouvido quer se queira quer não.
Na minha família, cantava-se " o tempo volta para trás ". É como se estivesse a ouvi-lo agora mesmo.
Tive um irmão muito especial que também vi entreter-se a brincar muitas vezes cantalorando a brincar " o calhambeque".
Foi muito bom recordá-lo, acredite.
Um beijinho
Maria

LPA disse...

Ainda não li tudo, já que se trata de um post muito sumarento, mas desde já lhe queria chamar a atenção para o facto de o Jorge Gil nunca ter apresentado o "Em Órbita" nos anos 60. Essa tarefa coube principalmente a Cândido Mota, embora outros o tivessem feito também como Pedro Castelo e João David Nunes.

LPA

josé disse...

LPA:

Agradeço a informação. Nunca cheguei a ouvir o Em Órbita, mesmo com o Jorge Gil, na primeira fase e que terminou segundo penso em 68.
A Cine-Disco da época publicava referências ao programa, mas também só apanhei a CIne-Disco dessa época, agora no séc. XXI e na biblioteca da Universidade de Coimbra que tem uma colecção e de que tomei apontamentos e tirei fotos.

A seguir voi colocar os singles esgotados e esquecidos, entre os quais o Mendigo de José Almada de que já falamos.


Cumprimentos.