domingo, 11 de fevereiro de 2007

Leituras jurídicas de bolso

No âmbito das temáticas da Justiça e movido pelo interesse em procurar saber mais um pouco sobre intervenções públicas de nomes conceituados e sabedores das matérias em causa, lembrei-me de consultar publicações antigas.
Deparei com grande número de artigos em revista, alguns deles pequenos ensaios e outros, meras transcrições de intervenções públicas da autoria de nomes conhecidos e outros nem tanto.
A prova recolhida, evidencia a importância que sempre se deu a certos temas da Justiça, em certos meios da magistratura, advocacia e mesmo universitários, com grande défice de intervenção destes últimos.
Assim, como exemplo, transcrevem-se aqui os temas e a localização de artigos para quem estiver interessado, mormente jornalistas apressados e que assim podem reflectir antes de escrever e ainda para todos aqueles que ignorando esta área de intervenção cívica, vão formando ideias pelas letras gordas do papel de jornal, engrossando o caudal de quem anda mal informado. Há muitos anos, uma editora de livros de bolso, lembrou-se de um slogan de propaganda do produto livro: “quem não lê, chapéu!”
Leia-se, então:

1. “Gozam os magistrados do direito à greve?”- pequeno artigo de meia dúzia de páginas, muito bem recheadas e documentadas legalmente, da autoria de Francisco Liberal Fernandes, assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, na Revista do Ministério Público( RMP), nº 14, de Abril-Junho 1993.
2. “Corrupção: para uma abordagem jurídica e judiciária”, pequeno estudo de 16 páginas, da autoria de José Souto de Moura, na mesma RMP, de que se transcreve uma pequena frase: “ ver e calar parece ser assim a regra de ouro para quem quer ter uma vida relativamente tranquila”.
3. “Sobre o modelo de hierarquia na organização do MºPº”, 20 páginas densas de referências ( citações de Edgar Morin oblige) da autoria de José Narciso Cunha Rodrigues, na RMP nº 62, de Abril- Junho 1995 e de que também se cita uma pequena frase: “Naquela época,[1978] as tendências de opinião oscilavam, quanto à justiça, entre a imersão nas ideologias e a defesa de um espaço de neutralidade sustentado, algumas vezes, por afirmações cegas ou insensíveis ao processo histórico “. Leram bem : “processo histórico”!
4. “Notas sobre o Conselho Superior da Magistratura”, 10 páginas muito interessantes da autoria de Orlando Afonso ( juiz de direito), no mesmo número da RMP. Posso dizer a frase? Aqui vai: “Durante o regime de Salazar/Caetano, ou seja, durante a vigência da Constituição de 1933, o poder judicial era tido como um dos poderes soberanos do Estado; porém, a sua independência era apenas uma independência formal e material dada a inexistência de intervenção directa a nível de decisão. No entanto a magistratura era orgânica e economicamente dependente do poder executivo”. Não há aqui “fascismo”. Há regime de Salazar/Caetano- e muito bem.
5. “Sobre as decisões interpretativas do Tribunal Constitucional”. Mário Brito ( juiz jubilado do STJ e do TC) escreve 18 páginas de referências legais e jurídicas sobre o âmago da intervenção do TC , nas fiscalização das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade. A frase neste caso, é para resumir o assunto: “A questão- repete-se- está em saber se, considerada inconstitucional na decisão recorrida uma norma, em determinada interpretação, pode o T.C. julgá-la não inconstitucional noutra interpretação e impor essa interpretação ao tribunal recorrido.
6. “Corporativismo, judicialização da política ea “crise da justiça em Portugal” , 16 páginas sociologicamente puras da autoria de Pedro Coutinho Magalhães, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, in RMP, nº79, de Julho-Setembro de 1999. Frase chave: “Os cientistas enfrentam frequentemente um dilema de difícil resolução. A nossa preocupação com a fiabilidade das descrições e explicações que damos da realidade social afasta-nos por vezes de tratar aquilo que nela é incerto e mutável, ou seja, aquilo que é verdadeiramente interessante”. Indeed!
7. “Divisão de poderes e constitucionalismo:, virtudes e dilemas”, na RMP, nº 73, de Janeiro-Março de 1998, José Eduardo Faria, brasileiro, professor de Direito na Universidade de S. Paulo, apresenta-nos em 9 páginas, três dilemas das sociedades contemporâneas. Um deles:”Quanto mais o direito positivo multiplica as suas normas e leis específicas para intervir “tecnicamente” na dinâmica de uma sociedade heterogénea e complexa, menor seria sua coerência interna e soa organicidade; o que revelaria, com o tempo, sua progressiva incacidade de dar conta das tensões e dos conflitos sociais a partir de um conjunto minimamente articulado de “premissas decisórias”.
8. “ Dignidade da Pessoa e processo judicial”, um artigo de 15 paginas da autoria de Souto de Moura, na RMP nº 70 de Abril-Junho de 1997. Uma passagem, saborosa e actualíssima: “ Não há acesso à verdade sem contraditório e não há justiça sem distanciamento emocional. O tribunal da opinião pública, tal como aliás os tribunais populares, são pouco propensos a assegurarem aquelas condições. A isto acresce que, tantas vezes, a liberdade de informar é escrava duma lógica de mercado.”
9. “Tribunais-poder e responsabilidade”, numa dúzia de páginas da RMP nº 80 de Outubro-Desembro de 1999, Laborinho Lúcio, repisa conceitos já escritos e no mesmo estilo que procura demonstrar que a aplicação das leis é mais do que um silogismo ou até mesmo uma tarefa interpretativa balizada e rígida. A frase escolhida: “Assim, entre as linhas estruturantes do sistema actual a manter, cumpre destacar, como princípio, a independência dos tribunais, e como soluções de estratégia, a pluralidade de justiças, a separação das magistraturas , a hierarquia e a autonomia do ministério Público e o auto-governo das magistraturas.”
10. Do mesmo autor e publicado na Revista portuguesa de Ciência Criminal, dirigida por Jorge Figueiredo Dias, nº2 de Abril-Junho 1991, um artigo sobre a mesmíssima temática e intitulado“Subjectividade e motivação no novo processo penal português”. Em 16 páginas
11. “Neutralidade ou pluralismo na aplicação do Direito? Interpretação judicial e insuficiência do formalismo”, artigo de 24 páginas, publicado na RMP nº 65 de Janeiro-Março 1996, da autoria do magistrado espanhol, Perfecto Andrés Ibáñez. O artigo pretende, “reflectir sobre o tipo ou a qualidade da aproximação que o texto da lei permite hoje ao juiz-intérprete.”
12. Para terminar esta pequena resenha, um artigo de 44 páginas pelo Mestre Figueiredo Dias, publicado no nº 1 da sua Revista Portuguesa de Ciência Criminal, de Janeiro-Março 1991. O tema? “Sobre o estado actual da doutrina do crime- 1ª parte, sobre os fundamentos da doutrina e a construção do tipo de ilícito”. Artigo fundamental e que se consigna à atenção de quem se cuida por estas matérias.

Nesta temática, há mais sítios por onde buscar leituras. A Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, publica um Boletim da FDUC, com edições periódicas. A revista, fundada em 1914 e actualmente dirigida por uma comissão redactora composta de algumas das nossas sumidades em direito ( Almeida Costa, Ehrahardt Soares, Castanheira Neves, Lopes Porto e Faria Costa), chega a nichos de mercado e nem sempre de opinião pública. Tal como as outras, aliás. Por exemplo, a revista da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa.

Assim, aqui ficam estas singelas referências, para resumir algo que ao longo de mais de dez anos se produziu em tom teórico e sintético, sobre a aplicação do Direito, pelos tribunais e suas problemáticas complexas.
A teorização destes temas e destes assuntos, assenta primordialmente na qualidade de quem escreve. A temática do direito penal, complexa e estudada pelos teóricos, neste campo, estrangeiros, ensina-se em princípios básicos, que se transmitem de ano para ano e década para década, pelos estudiosos e docentes do Direito.
A compexidade do tema, remete para um compreensivo desinteresse, quem depara com apresentações populares de certas ideias desgarradas e é a esse nível que se poderá compreender a observação de Pedro Soares de Albergaria, num comentário no blog GLQL e que se deixa em nota, abaixo. Como aliás se remete anotação para o comentário de Guilherme, à primeira entrada escrita, neste blog.
A inteligência de quem estuda, ensina e transmite estes assuntos, refere-se a um quadro de ensino que , no dizer de Marcelo Caetano, “ na verdade o importante para a formação do homem de Direito não é tornar-se reportório vivo dos diplomas vigentes, mas possuir os quadros científicos, conhecer os princípios dominantes, ter bem presente uma nomenclatura.”

Nota de PSA:
Caro José, também não tenho resposta certa, mas há algo que é facilmente constatável: o alheamento dos doutrinadores das questões que vêm sendo debatidas em matéria penal não será imputável, apenas (e talvez nem sobretudo), a esses doutrinadores. Um dos problemas que nos aflige (e porventura, ainda, em menor medida do que noutras latitudes) é o da progressiva e autónoma intervenção dos decisores políticos e de organizações representativas da sociedade civil (associações representativas de vítimas, de minorias, etc.) nas soluções legislativas em matéria penal, tudo em prejuízo da influência de jurisconsultos e dos estudiosos, dos verdadeiros estudiosos, destas coisas. Os projectos relativos às leis mais importantes já não são encomendados a grandes especialistas, mas a gabinetes ministeriais de boys e, quando se trata de ouvir quem quer que seja, ouve-se, antes que tudo, aquelas organizações. Ninguém quer saber de teóricos e assumiu-se (erradamente) que nem tudo o que é bom na teoria funciona na prática. Daí o modo errático de legiferar, ao sabor da espuma dos dias, daí a “política criminal à flor da pele”. É natural que os académicos, habituados a uma discussão serena e séria sobre tais assuntos se afastem também cada vez mais. Por isso o alheamento de que fala é biunívoco: os políticos não querem saber dos jurisconsultos e estes não querem participar em discussões que alinham, não raro, por um modo muito superficial de abordar os temas.
Muitos já fizeram o diagnóstico da situação. António de Araújo, por exemplo, identifica o alheamento a que o José se refere como um sintoma de um ambiente populista, que invade o sistema de justiça penal, aqui e lá fora (v. “Do Populismo Penal ao Mistério de Carcavelos”, na revista Atlântico, 2, 2006, p. 22 e ss., interessante artigo de opinião que reproduz, em parte, o que já havia opinado em livro – Abuso Sexual Contra Menores – Entre o Direito Penal e a Constituição, 2005, p. 287 e ss.). Estou de acordo.

As artes em tom maior e menor

A primeira ilustração deste blog, é da autoria de Moebius, um autor francês de bd, cuja obra publicada originalmente nas revistas Pilote e Métal Hurlant, nos anos setenta e oitenta, é um monumento à arte menor da bd.

Interessa-me, por isso, fazer o paralelo entre o artista maior - Rembrandt, de seu nome e que viveu no séc XVII e este do nosso tempo e que assina Jean Giraud, em pseudónimo Moebius.
Duas imagens, fazem o paralelo total de uma técnica de desenho fundamental.

Aqui o desenho a água-forte, de Rembrandt, num dos seus auto-retratos:


Aqui, a seguir, o desenho assinado por Moebius, também em auto-retrato, tal como publicado no nº688 da revista Pilote, de 11.1.1973. Sete páginas que representaram a passagem do estilo de histórias desenhadas de heróis o Far-West americano, com as personagens de Blueberry, para temáticas mais complexas e interessantes.

Em 1979, seis anos depois, Moebius publicava na editora francesa Les Humanöides Associés, um álbum intitulado Major Fatal, com desenhos de anos anteriores, originalmente publicados na Métal Hurlant. Uma página desse álbum, publicada originalmente na revista Métal Hurlant nº 10 de Outubro de 1976:

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Capas que me interessam

Coisas que me interessam, são por exemplo, capas de revistas. Por isso, coloquei aqui, algumas.
O Mundo Motorizado foi a primeira.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Formação de Magistrados ou Formação de Juristas?

Uma das coisas que me interessa, nesta altura, é a discussão acerca dos modelos de magistratura que temos em Portugal e que poderemos vir a ter, em concertação com decisões jurisprudenciais recentes e outras de sempre que colocam a questão, sempre na ordem do dia:

Os magistrados, maxime os juízes, administram a justiça em nome de quê e de quem?

A seguir, transcreve-se um artigo publicado numa colectânea de comunicações apresentadas no Colóquio internacional "modelos de Formação e Carreiras Judiciárias", promovido pelo SMMP, em 2 e 3 de Outubro 2003.

José Joaquim Gomes Canotilho
Professor Catedrático da Faculdade
de Direito de Coimbra

§ 1° - As provocações não formam magistrados

O modo provocatório como prólogo de livros e colóquios parece estar in... Nada mais fácil neste Colóquio Internacional sobre Modelos de Formação e Carreiras Judiciárias do que estar na moda começando por palavras ásperas. Iremos ver que é preciso navegar para além das criticas e provocações.
Num recentíssimo artigo publicado na revista italiana Studium luris (revista dedicada às formações jurídicas), Giorgio Spangher (') começava assim:
"Affrontando recentemente i temi delia crisi delia giustizia penale è stato affermato che il piú basso livello di fiducia si registra in quei Paesi che presentano magistrature di tipo napoleonico, cioè con magistrati reclutati in giovane età, senza precendenti esperienze professionali, una forte separazione fra le professioni legali, un rapporto difficile con Ia política e, di recente, 1' istituzione di organi di auto-governo e una forte sindicalizzazione. È quindi evidente che questo modello di magistratura, che fino a oggi è prevalsa in Italia, è in crisi e non risponde alle ricl dei propri cittadini" (Guarnieri, Prima i giudici, poi le leggi, in Il 22 Ore, 6.1.2003).

Alguns anos antes, um outro autor - Alain Minc - num livro i conhecido (2) fazia afirmações ainda mais provocadoras quanto à formação de juízes.
"Os juízes são formados como os militares; são recrutados após o termo dos estudos e colocados numa caserna onde são formados por outros juízes como os militares são formados por outros militares”
Dentro dos quadrantes culturais portugueses, o Autor que, de forma mais incisiva, se pronunciou relativamente à formação e recrutar de magistrados foi Paulo Rangel. No livro intitulado Repensar o 1 Judicial (3) analisa o arquétipo de "juiz funcionário" que reconduz aos seguintes traços:

(1) integração orgânica no aparelho administrativo e burocrál
(2) recrutamento com base exclusivamente técnica;
(3) socialização profissional dentro da máquina judicial;
(4) ordenação interna hierarquizada, com carreira, disciplina e moções;
(5) inspecções internas e progressão com base no mérito/antiguidade:
(6) ingresso genérico e não para certo e determinado cargo.

A nossa posição relativamente a estas provocações está resumida na epígrafe: as provocações não formam magistrados. Repensar as instituições é sempre necessário, mas o mais difícil é avançar com propostas alternativas satisfatórias dentro dos quadros do Estado de Direito democrático e da nossa cultura judiciária. Neste sentido, o caminho que vou seguir nesta conversa é bastante diferente. A nossa tese fundamental, será esta: a formação dos magistrados não é indissociável da formação dos juristas em geral. Precisamente por isso devemos perguntar-nos se a montante da "crise do judiciário" não haverá outra "crise" tanto mais profunda que a da formação dos juízes. A nossa opinião é afirmativa. Vamos procurar explicitá-la.

§ 2° - A ruptura da articulação da teoria com a prática

Avançaria com o mote inspirador: o "schock" da prática e a miséria da metodologia jurídica. Um ponto que se nos afigura central na problematização das formações profissionais diz respeito à ruptura da teoria com a prática. Não deixa de ser significativo que a revista alemã Rechtstheorie (4) tenha dedicado um número especial a esta ruptura. Os organizadores deste número - Werner Krawietz e Martin Morlok - colocavam assim a questão: segundo o common sense dos juristas práticos (juízes, advogados) as teorias e os teoremas para a interpretação e aplicação das normas jurídicas que se ensinam a propósito da exposição das matérias de direito positivo são de fraco préstimo na vida quotidiana do direito e raras vezes são seguidas. Verificar-se-ia uma espécie de "schock-Praxis" traduzido na sensação profunda de que o trabalho diário dos juristas e o seu mundo do direito pertencem a outra galáxia do universo jurídico muito distanciada da dos metodologo-teóricos. Em sentido contrário, os académicos doutrinários acusam os juristas profissionais de esquecimento das regras hermenêutico-metodológicas elementares. Colocadas assim as coisas, é lógico que se pergunte: em que é que reside afinal o problema?
O problema reside, por um lado, na formação académica. Sabemos bem que o ensino não substitui os estágios profissionais e os estágios não substituem a vida. No entanto, deve perguntar-se se a qualificação profissional não depende, desde logo, de uma formação académica adequada. Neste contexto, observou-se acertadamente que no plano da metodologia e das teorias metódicas ensinadas nas faculdades se verificam duas transferências dos métodos e teorias para fora da realidade: (1) a metodologia e a metódica do caso pretende ter uma qualquer conexão com a prática mas raramente com a prática judicial; (2) a teoria dos métodos e as teorias jurídicas transferem para as teorias e, consequentemente, pouca influência podem ter quer na formação quer na prática judicial. Sendo assim, talvez se possa dizer que a ruptura da teoria com a prática seja, desde logo, da responsabilidade dos académicos. Mesmo quando estas teorias e métodos não estão completamente esquecidos. Verifica-se que os profissionais se defrontam sobretudo com o"trabalho do caso", com o trabalho em torno do Tatbestand ou da fattispecie que raras vezes mereceu reflexão teórico-prática apurada no plano dos estudos.

Se as metodologias académicas falham na sua aproximação à praxis, voltemo-nos para o plano da praxis judicial para verificarmos se aqui, pelo menos, se verifica algum impulso para a revivíficação da teoria e praxis. Aqui verifica-se que quem triunfa não é o método mas a aceitação da decisão judicial pelas instâncias judiciais - ganhando, assim, confiança institucional. O problema central reside aqui: a aceitação institucional por colegas e instâncias não significa bondade metódica da decisão ou decisão de grande qualidade (jurídica ou social). Decide-se no plano do poder e da autoridade do sistema judicial, mas isso não implica necessariamente nem justiça do caso concreto nem qualidade da decisão. De qualquer modo, e não obstante a diversidade das decisões, existe um certo consenso institucional entre o que é profissionalmente defensável e o que não é. Diríamos que o consenso e aceitação profissional assenta numa outra ideia de coerência das decisões intersubjectivamente testada. Como qualquer outro pensamento institucional, o pensamento judicial-profissional não é uma compreensão individual do direito e da aplicação do direito. Aqui radicam, porém, - ou podem radicar - alguns dos problemas da ruptura da teoria com a prática, agora do lado dos próprios práticos. A prática judicial tem como lógica intrínseca: concentrar-se exclusivamente nos aspectos do caso que se afiguram com relevância jurídica, com desprezo dos outros mundos da vida presentes no caso. Os profissionais tornam-se, assim, técnicos do direito, correndo o risco de se divorciar quer da "realidade da norma" quer da "realidade do caso". Bastarão esquemas de decisão processualmente correctos. Aproximamo-nos, assim, de uma questão decisiva para a a formação dos juristas, sobretudo dos magistrados. Como articular a teoria com a praxis, a partir da praxis judicial? A resposta aponta para uma arte da praxis jurídica (').

§ 3° - Para uma teoria das jurisprudências

Na sequência da problematização que vimos fazendo, é altura de vos apresentar algumas observações sobre observações que fornecerão o"pretexto" para vos falar em jurisprudências em vez de jurisprudência.

Propor-vos-ei uma breve suspensão reflexiva em torno de três jurispru¬dências:
(1) jurisprudência "multifuncionalista";
(2) jurisprudência "principialista";
(3) jurisprudência "precedentalista".

(1) Jurisprudência multicontextual
Colhemos este conceito num sugestivo artigo de Doris Lucke (6) intitulado: "Doxa e Prudentia: conflitos de racionalidade e problemas de comunicação como paradoxos jurídicos de profissionalização". Sob uma perspectiva sociológica, a jurisprudência multicontextual aponta para a indíspensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro (in) das situações de vida e das respectivas experiências primárias. Para isso, carecem de competência para uma comunicação multicultural que não se esgota no uso de linguagem profissional nem na interpretação profissionalizante da lei. Dir-se-ia, por outras palavras, que o código binário do direito justo-injusto carece de informações outras (de caríz sociológico, etnológico-jurídico) que lhe permitam captar a aceitação /não aceitação, adequação/não adequação das decisões jurídico-formais. Ainda por outra palavras, porventura mais expressivas: a prudentia jurídica, que outra coisa não é senão a arte de decidir em situações difíceis, só está em condições de se afirmar como prudentia se estiver atenta às exigências da aceitação dóxica. Isto significa estar atento a vontades, sentimentos, opiniões que, mesmo de forma indirecta, possam contribuir para o acesso à justiça.
Façamos acompanhar estes preâmbulos multicontextuais por observações sobre observações. Estamos a recordar-nos de uma discussão sobre a lei de saúde mental em que os profissionais da medicina sugeriram que as sentenças sobre internamento forçado fossem proferidas nos próprios hospitais. Estamos a recordar-nos de um debate sobre prisões preventivas em que um jovem juiz lembrou que muitos juízes não sabem o que é uma penitênciária.
Temos presente um apelo de um advogado sugerindo o "direito fundamental à fuga" se o juiz não tomasse em consideração, num juízo de avaliação prospectiva, as consequências dramáticas da imposição da medida de coacção mais excepcional.

(2) Jurisprudência principialista
Como o próprio nome indica, a jurisprudência principialista significa dizer o direito no caso concreto mediante a aplicação de princípios. Com isto, estamos a retomar uma aula que há alguns anos dirigimos no Centro de Estudos Judiciários. Nessa altura, uma jovem auditora duvidou da bondade jurisprudencial dos nossos ensinamentos. O discurso em torgo de princípios - disse ela - é encantatório mas traz uma enorme insegurança aos operadores jurídicos. Vale a pena retomar o diálogo aqui neste colóquio.
Os exemplos que fornecemos tinham tido enorme impacto nos meios políticos e sociais. Desde o "caso do crucifixo" na Alemanha até ao "caso Serena" na Itália, tentámos demonstrar que esses casos não são colocados logo em sede de Tribunais Constitucionais mas perante juízes de primeira instância.
Quando se fala de jurisprudência de princípios - convém aclarar este ponto - não significa que a jurisprudência deva desprezar as regras jurídicas, precisas e densas. Como incisivamente sublinhou um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão, Ernst Wolfgang Böckenförde, o direito não pode ser todo de princípios nem pode reduzir-se a regras. No entanto, quando se trata de aplicar os princípios do Estado de Direito, não há código que valha aos jovens juristas. Não há código em que se densifique totalmente este princípio. Quando está em causa o princípio da dignidade da pessoa humana, não vale a pena procurar a "chave silogística" para a aplicação deste princípio. Acontece, até, que o problema da aplicação de princípios não é apenas um problema de juristas práticos. Vale a pena referir um exemplo recentíssimo para demonstrar que todos nós estamos obrigados a um exercício quotidianamente renovado de compreensão de princípios. O caso é este. Em Fevereiro de 2003 aparecia a actualização do célebre comentário à Lei Fundamental Alemã de Maunz-Dürig, com um novo comentário ao art. 1/1 que, recorde-se, afirma a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana. O fundador do comentário (Dürig) nunca o tinha actualizado (desde 1958), permanecendo sempre a afirmação da dignidade da pessoa humana como fundamento de um "sistema de valores" constitutivo do ordenamento jurídico alemão. O novo comentador - de uma outra geração - viu-se obrigado a enfrentar o problema da dignidade da pessoa humana - os novos problemas suscitados pelos embriões excedentários e pela inseminação artificial, reconhecendo que os interesses terapêuticos e a liberdade de investigação trouxeram renovada insegurança quanto a este valor absoluto da dignidade da pessoa humana. É precisamente aqui que vem residir a objecção fundamental colocada por um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão (e já atrás citado). Num artigo publicado no jornal diário - o Frankfürter Allgemeine - entende que se expulsou o fundador do comentário. A dignidade valor absoluto é uma outra coisa diferente das "pretensões de dignidade". Compreender-se-á, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana continue o mesmo, mas os jovens juízes, tarde ou cedo, talvez tenham de decidir se a liberdade de investigação garantida pela Constituição justifica ou não a existência de embriões excedentários a que não se atribui um valor absoluto de dignidade da pessoa.

(3) A "jurisprudência precedentalista"
Num trabalho publicado em 1994, o jurista alemão R. Schmidt (') salientava uma inequívoca tendência na prática profissional dos juízes: positivismo jurisprudencial jurisdícional. Bastava ler os acórdãos mais recentes dos vários tribunais constitucionais (e, também, das sentenças do Tribunal de Justiça das Comunidades) para se concluir que, se, por um lado, se rejeita decididamente o amparo maiêutico das "grandes teorias" ("razão pública", "discurso racional", "integridade"), também, por outro lado, se evita qualquer abordagem sobre o método de interpretação-concretização do direito. E se não há teria nem método, o que há? A resposta é esta: positivismo jurìsprudencial jurisdicional. Instalou-se um "precedentismo metódico judicialmente fechado". Há, pois, prudentia
Sem scientia? Mas de que prudentia se trata? De leading cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial? Não! De "assentos" ou de "uniformizações de jurisprudência" propostas por tribunais superiores? Não! Impõe-se um programatismo do caso baseado noutras senten¬ças. A remissão de "sentenças para sentenças", o acolhimento de "dizeres anteriores", o "reenvio de acórdãos para acórdãos" pode significar, a nosso ver, a morte da própria jurisprudência. Juris dicere não é repetir o que outros decidiram noutros casos.
Chegamos assim, ao último tópico da nossa conversa. Na qualidade de teórico, e afivelando a máscara de professor, o que é que vos posso sugerir para a continuação do diálogo?

(1) Cfr. Giorgio Spangher, "Riforma dell'ordinamento giudiciario e Separazione delle carriere" in Studium Juris, 2003, p. 819.
(2) Cfr. Alain Mine, Au nom de Ia loi, Paris, 1998.
(3) Cfr. Paulo Castro Rangel, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos- Porto, 2001, p. 161.
(4) Cfr. Rechstheoie. Sonderheft. Juristische Methodenlehre (vol. 32, 2001), com o título Von Schritern und Wiedralebung juristischer Methodik im RechtsalLtag - ein Buch zwischen Theorie und Praxis?
(5) Algumas das ideias aqui expostas inspiraram-se no trabalho de Hans-Joachin Strauch, "Theorie - Praxis - Bruch - Aber wo liegt das Problem?", in Rechtstheorie, 32 (2001), p. 197 ss.
(6) Cfr. Doris Lucke, "Doxa und Prudentia: Rationalitátonkonflikte und Kommunikationprobleme ais Paradoxien rechtlicher Professionalisíerung", in Rechtstheorie, 3L (2001), p. 159 ss.
(7) Cf. R. Schmidt, "Grundrechte", in D. Simon (org.) Rechtswissenschaft in der Bonner Grundgesetz. Studien zur Wissenschaftsgeschàchte der Jurisprudenz, 1994, p. 209 ss.