Escrever sobre memórias musicais, com referências a gostos particulares pode ser ingrato e sujeito às imprecisões diacrónicas.
A memória mais remota que alcanço, em matéria musical reconhecida, são os primeiros anos dos sessenta.
Em 1964, 65 e 66, ouvia-se na rádio e em discos single, as canções de Roberto Carlos, brasileiro que popularizava em quadras redondas, trivialidades e até o amor para efeitos comerciais. O Calhambeque e Namoradinha de um amigo meu, foram músicas que lembro bem.
Incontornável nessa época, era também a música popular do Conjunto António Mafra, com uma série de êxitos continuados e de alto valor artístico, nos estreitos parâmetros que a música folclórica de viras, marchas e chulas, permite. As letras eram de sabor popular e brejeiro, mas de graça certa. O carteiro, O vinho da Clarinha, Sete e pico e Ora vejam lá, são êxitos de sempre, na música popular portuguesa.
Outro êxito retumbante da época foi Ó tempo volta p´ra trás, cantado por António Mourão.
Em 1966, os espanhóis Los Bravos, cantavam Black is Black. A rádio de então passava mais música do mundo do que hoje acontece. E por isso, ouvia-se Adamo, Christophe ( Aline), algumas canções italianas e arremedos de outras músicas que eram a modernidade nos hit parades de então.
Naquele ano de 1966, na música popular de origem inglesa e americana, então já importante no mercado português, através das maiores editoras, produziram-se muitos e bons trabalhos. Por exemplo, saíram nesse ano, os discos Blonde on Blonde de Bob Dylan; Pet Sounds dos Beach Boys e Sounds of Silence de Simon & Garfunkel .
Nenhum desses trabalhos, ou até mesmo o nome dos artistas era uma referência familiar, mesmo vagamente, embora mais tarde os viesse a considerar como obras primas, em função do conhecimento e do aperfeiçoamento do gosto.
Porém, se ouvisse um programa de rádio que passava no Rádio Clube Português, chamado “Em Órbita” e que começara em 1 Abril de 1965, apresentado por Jorge Gil, era mais que provável ouvir todos esses artistas, pois era também o único programa da rádio portuguesa em que tal seria possível..
Por essa ocasião, e no ano de 1967, já Sandie Shaw, de cabelos negros lisos e descalça, cantara Puppet on a string no festival da Eurovisão, uma canção pop que a ninguém deixara indiferente e o país já vira e ouvira Eduardo Nascimento, cantar O vento mudou com que ganhou o festival da canção nacional desse ano.
No Verão de 1967, começou a ouvir-se uma música chamada Whiter Shade of Pale do grupo inglês Procol Harum e que começava com uns acordes de órgão Hammond, baseados num andamento de uma cantata de Bach e uma outra fez o pleno do Verão. Em Julho, Scott Mckenzie cantava San Francisco , canção que celebrava o flower power e o movimento hippie.
Era uma blasfémia, imperdoável. Aliás, o escândalo tinha sido grande em todo o mundo e na América tinha havido alguns autos de fé em que se queimaram coisas alusivas ao grupo.
A música dos Beatles, no entanto, era um fenómeno que por sua vez se tornava secundário relativamente aos epifenómenos que suscitava, ligados à moda e aos costumes, em evolução acelerada, o que igualmente sucedia, talvez em maior grau com os Rolling Stones, de quem não conhecia nessa altura nenhuma música em particular, e relativamente aos quais só mais tarde veio a apreciar a música, mesmo a desse tempo, como Ruby Tuesday ou She´s a rainbow.
Os Stones diferenciavam-se dos Beatles pela imagem pública de maior rebeldia e confronto com o sistema social então preponderante, mesmo na Inglaterra e na América, de grande conservadorismo nos costumes. Os meios de informação encarregavam-se de alimentar o mito que se foi criando, relatando que os Stones tinham sido vistos a urinar em locais públicos, ostensivamente, como se isso fosse um ultraje inultrapassável à civilização ocidental ou dando conta da maior displicência demonstrada pelos membros do grupo relativamente ao seu público. E no entanto, essa imagem funcionava como apelativa para quem se projectava nessa rebeldia e ambicionava um maior distanciamento da geração precedente.
Algumas canções que se ouviam e alguns desses subprodutos eram extremamente agradáveis ao ouvido e como ainda era custosa a adaptação aos movimentos e à sonoridade acústica e exclusiva das cordas dos violinos, violas e violoncelos, tornava-se muito mais fácil gostar de ouvir Mary Hopkin cantar Those Were the Days ou até Delilah de Tom Jones , para não falar de Hey Jude ou Ob
Em 1968, em Portugal, Marcelo Caetano tomava conta do poder, como presidente do Conselho de ministros; nos USA, em Junho, era assassinado Robert Kennedy e meses antes igual destino tivera Martin Luther King. Em Maio, em França, os estudantes universitários barricaram várias ruas e tentaram a revolução popular, mas em Portugal pouco se falou disso.
Em Portugal, a mudança na chefia do Governo trouxera uma abertura política tímida e um pouco mais de liberdade de expressão. Nada de especial, ainda não era possível criticar abertamente o Governo, mas pelo menos permitiu o surgimento de uma revista ( ainda da Agência Portuguesa de Revistas), quinzenal e chamada Cine Disco, cujo número de estreia apareceu em Dezembro de 1968 e em Agosto de 1969 passou a chamar-se Mundo Moderno. A história da revista, já foi contada, sumariamente, na Portadaloja.
As novas referências implicavam uma alteração qualitativa no gosto por modinhas de hit parade e representavam uma evolução para rock mais inovador, elitista e snob, como era o gosto do apresentador do“ Em órbita” que educou muito ouvinte para a música popular que se produzia fora de Portugal.
1969 foi o ano de descoberta dessa inefável sensação de pertença a uma coisa nova e agradável que se movia com a cultura popular: a música rock.
Em 1969 houve um acontecimento que marcou o ano, no mundo: Em 20 de Julho a nave Apollo 11 chegou à lua e o primeiro homem, Neil Armstrong, pôs lá o pé. O espectáculo começara três dias antes, com o lançamento da nave, na Florida e passou em directo na televisão, a horas tardias e já no dia 21, tendo em conta a diferença horária.
A revista Rolling Stone, criada em 1967 por um estudante universitário, Jann Wenner, em Abril de 1969, escrevia: Quer nos agrade quer não, chegámos a um ponto da história social, cultural, intelectual e artística dos Estados Unidos em que todos vamos ser tocados pela política. Já não podemos ignorá-la . ela ameaça a nossa vida quotidiana, a nossa felicidade quotidiana... Os negros e os estudantes são nossos irmãos e estão a fazer coisas de que temos de ter consciência .
A revista, em 1969, não era ainda conhecida, nem me lembro de a ter visto então, mas iria tornar-se uma das principais fontes de informação sobre a música e a cultura popular americanas e iria proporcionar dos momentos mais duradouros de prazer estético e intelectual, nos anos setenta, ao jovem embasbacado com os seus números quinzenais, em lugares de distribuição seleccionada.
Perante estas mudanças sociais e culturais, já não era mais possível fazer coexistir a música de Beethoven com a dos Beatles, de modo a escolher uma em detrimento doutra. Ainda por cima, o que ouvia cada vez mais, era essa música nova e que permitia uma identificação fácil e imediata com alguns dos valores que veicula e que apesar de não serem todos assimiláveis, por variadas razões, permitem o sonho com outras formas de viver ou a experimentação de outras sensações estéticas até então ignoradas e diferenciadoras da massa anónima.
De repente, a moda começou a transformar-se e as calças de fazenda com dobras em baixo, como se usavam nos anos cinquenta e o meu pai ainda usava, deixaram de ser referência comparativa com o que vinha lá de fora, embora com atraso significativo..
Quanto à música, essa descoberta gradual começou por algumas canções, nem sempre as mais importantes, significativas ou relevantes. Apenas as que melhor entravam no ouvido. Lembro-me de ouvir El condor pasa, de Simon & Garfunkel; uma versão do “hino à alegria” da nona sinfonia de Beethoven, por Waldo de Los Rios; Yester me, yester you, yester day de Stevie Wonder e Wight is Wight, de Michel Delpech e talvez Proud Mary dos Creedence Clearwater Revival..
Mas a par destas canções, fica a memória de grupos como os Archie com Sugar, sugar ou os Shocking Blue, como símbolo de modernidade e cuja imagem tinha mais a ver com a moda lá de fora do que com a música propriamente dita. O grupo não passaria no Em Órbita, de certeza! Nesse caso, o que impressionava era a imagem, de algo inacessível e apelativa e que tinha a ver com mulheres, ainda muito indefinido mas marcante.
Em Agosto do ano de 1969, em Portugal, a pretexto de sexo no cinema, falava-se de um filme especial: “Helga”. Sob a capa do fenómeno da maternidade, havia cenas pouco usuais de nudez feminina. Contudo, a curiosidade dos espectadores, mais voyeurs que outra coisa, saía frustrada porque o filme mostrava essencialmente o acto de dar à luz. Outro filme polémico foi A Piscina, com Romy Schneider e Alain Delon. No fim do ano, ainda a propósito de sexo, a revista Cine Disco, referia-se a um escândalo com o disco de Jane Birkin e Serge Gainsbourg, “Je t´aime...moi non plus”. “Lembremos para os nossos leitores que ainda o ignoram que esta canção interpretada por Serge Gainsbourg e Jane Birkin está totalmente proibida ( venda e difusão) na Itália, Espanha e no Brasil. Motivo essencial: as palavras são susbtituídas por suspiros de alcova.” A BBC, por seu lado, não passou o disco, por o considerar “unsuitable for playing”, negando assim a censura efectiva. O disco, porém, ainda hoje, não deixa indiferente quem o ouve, devido aos sussurros e suspiros da cantora que simula o acto de fazer amor.
Um filme que marcou a cultura pop, foi estreado em Julho nos USA. Easy Rider, com os actores Peter Fonda e Dennis Hopper como hippies, de mota, a fumar marijuana e a caminho de New Orleans, mostrava Jack Nicholson, no papel de um advogado bêbado. A banda sonora incluía temas de Jimi Hendrix, Steppenwolf e Byrds, para além de outros. A imagem genérica e a iconografia passou como uma das mais influentes do fenómeno hippie e de contracultura que caldeava a música popular, tendo chegado a Portugal os símbolos e a música.
No verão, em Inglaterra e nos EUA , organizaram-se os festivais da ilha de Wight e de Woodstock.
O primeiro contou com a presença de Bob Dylan, já nessa altura uma figura mítica e que foi cabeça de cartaz, apesar de só ter tocado uma hora, o que irritou a assistência, de 150 mil pessoas.
O festival de Woodstock foi o acontecimento desse ano e reuniu no local mais de 400 mil pessoas que mesmo à chuva cantaram e dançaram ao som de Jimi Hendrix, que interpretou o hino Star Spangled Banner; Janis Joplin, The Who, Canned Heat, Creedence Clearwater Revival, Greateful Dead , Crosby Stills Nash & Young que tocavam pela segunda vez em público e Santana que estreou um baterista, Mike Shriever que fez um solo de bateria memorável, tão memorável como a interpretação de Alvin Lee na canção I´m going home.
O festival foi tema de um número especial da revista Life e deu origem a um filme, dos mais conhecidos da música rock. Foi publicitado com o slogan de “Três dias de música e paz ”, o que não deixava de ser irónico, num país que nem um mês antes tinha assistido ao assassinato de seis pessoas ligadas ao cinema,
Os assassinos deixaram escrita a sangue, a palavra “porco”, numa das portas . O principal assassino, soube-se pouco depois, era Charles Manson, de 35 anos, ligado à música e cultura popular. O acontecimento foi amplamente noticiado, até em Portugal, onde a censura ainda existia e apesar de ter abrandado, cuidava particularmente dessas coisas que podiam mexer com sensibilidades.
Neste ambiente de violência, no final do ano, uma outra tragédia veio ensombrar ainda mais o meio musical: em Dezembro, os Rolling Stones decidiram organizar um concerto gratuito para as massas e apoiantes, na sequência do espírito de Woodstock.
Fizeram-no em Altamont, perto de San Francisco, em também entraram os Jefferson Airplane, os Grateful Dead e os Santana. Mais de 300 mil pessoas compareceram e não havia condições por não terem sido preparadas previamente.
Por outro lado , os Stones encarregaram a segurança no recinto ao grupo Hell´s Angels, um gang motorizado e dado à violência. Segundo Keith Richards, um dos elementos dos Grateful Dead tinha-lhe assegurado que o grupo não era muito perigoso e era possível controlar, o que já acontecera em concertos deles.
Apesar disso, as condições para a violência explícita surgiram rapidamente e segundo vários testemunhos atingiu um grau muito elevado, com espancamentos com tacos de bilhar e navalhadas, até que os Stones tocaram Sympathy for the Devil e a partir daí foi o pandemónio.
Um dos presentes, um jovem negro, puxou uma arma e foi imediatamente apunhalado até á morte, na frente de toda a gente.
Essa morte e a demais violência, excessiva e demente, fixou para sempre o fim da era da paz e amor nos concertos rock e na música popular, e Altamont tornou-se um adjectivo dos aspectos negativos do rock, tal como o disse Billy Graham, um promotor de espectáculos, já falecido. Há há um filme, Gimme Shelter, que fixou para sempre essas cenas e a desordem que se instalou.
Mas para além desses episódios trágicos, a música produzida durante o ano, foi verdadeiramente excepcional. A revista Guitar Player, em número especial de 1999, considerou mesmo esse ano de 1969, como o maior para a música rock, em termos estritamente musicais.
Os discos publicados foram tantos, tão bons e tão marcantes que não deixam grandes dúvidas em subscrever essa opinião, embora quase todos fossem ignorados, em detrimento do Sugar Sugar dos Archies ou o tema de amor do filme Romeu e Julieta de Henri Mancini. Mas por cá, já se falava de um grupo belga chamado Wallace Collection que tocava um tema muito passado na rádio: Day dream, com um coro de la la la, deveras cativante. E na música portuguesa, falava-se também do grupo Filarmónica Fraude, composto por seis elementos(1). Era um grupo de música moderna e por isso de culto, para os jovens em busca da novidade e qualidade na música, para além de António Mourão e outros do mesmo género.
Não era fácil com aquela idade e em Portugal, naquele meio, só através do rádio, dominar os fenómenos emergentes na música pop. Nem interessava. Assim, só por uma qualquer circunstância do acaso e talvez por uma curiosidade provocada quem sabe por um poster(2) ou por outro pretexto folclórico, poderia ter ouvido e gostado logo do disco Uncle Meat de Frank Zappa que saiu no mês de Junho desse ano ou até do primeiro disco dos Allman Brothers. Para além desses, saíram durante o ano, inúmeros álbuns de grande qualidade artística, alguns deles publicados em Portugal.
Entre eles, o segundo e terceiro álbuns dos Creedence Clearwater Revival, chamados Bayou Country e Green River. Aquele continha Proud Mary e o refrão “rollin´, rollin´rollin on the river” e a mudança de ritmo que a tornava irresistível como um clássico da música pop e o outro tinha Bad moon risin´e Lodi, do mesmo estilo.
Os CCR foram um dos primeiros grupos que ajudaram a definir o gosto pela música popular americana, antes, ainda, de Have you ever seen the rain.
[1] António Luís Corvelo de Sousa; José João Parracho; José João Pinheiro Brito; António Antunes da Silva; Júlio Vital dos Santos Patroicínio e João Manuel Viegas Carvalho. O tema mais conhecido tinha como refrão: Assim defino a vida de quem tem animais de estimação de vida sã. E em barracas com ar condicionado bichinhos que devoram croissants. Cães com casaquinhos de cambraia e gatos com golinhas de astracan.
[2] Durante os anos sessenta ganhou notoriedade a moda de anunciar os espectáculos com posters cuja concepção ficava muito a dever à Art Nouveau e ao desenho psicadélico das letras que se embrenhavam umas nas outras até se tornarem virtualmente ilegíveis. Os maiores cultores desta arte foram nos USA, Stanley Mouse e Victor Moscoso e mais tarde Rick Griffin e na Inglaterra Michael English.
3 comentários:
Nesta viagem que aqui fiz consigo pela música popular, recordei alguns temas que nos ficam no ouvido quer se queira quer não.
Na minha família, cantava-se " o tempo volta para trás ". É como se estivesse a ouvi-lo agora mesmo.
Tive um irmão muito especial que também vi entreter-se a brincar muitas vezes cantalorando a brincar " o calhambeque".
Foi muito bom recordá-lo, acredite.
Um beijinho
Maria
Ainda não li tudo, já que se trata de um post muito sumarento, mas desde já lhe queria chamar a atenção para o facto de o Jorge Gil nunca ter apresentado o "Em Órbita" nos anos 60. Essa tarefa coube principalmente a Cândido Mota, embora outros o tivessem feito também como Pedro Castelo e João David Nunes.
LPA
LPA:
Agradeço a informação. Nunca cheguei a ouvir o Em Órbita, mesmo com o Jorge Gil, na primeira fase e que terminou segundo penso em 68.
A Cine-Disco da época publicava referências ao programa, mas também só apanhei a CIne-Disco dessa época, agora no séc. XXI e na biblioteca da Universidade de Coimbra que tem uma colecção e de que tomei apontamentos e tirei fotos.
A seguir voi colocar os singles esgotados e esquecidos, entre os quais o Mendigo de José Almada de que já falamos.
Cumprimentos.
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