domingo, 18 de maio de 2008

A crítica da escrítica

O comentador “ Queirosiano”, num apontamento escrito a propósito da crítica da música popular, tanto neste blog, como principalmente, no do ié-ié, indica a “ligeireza” da crítica gaulesa, particularmente dos escribas da Rock & Folk, em contraponto a uma hipotética qualidade superior, na matéria, nas “boas revistas “ dos anglo-saxónicos.

Em primeiro lugar, que boas revistas tinham os anglo-saxónicos, no domínio da crítica discográfica, com dedicação à música popular, nos anos setenta, período crítico em causa?

Conheço poucas: do lado inglês, só conheço, aliás, jornais, com destaque para o New Musical Express e o Melody Maker, semanários da modalidade, num período demasiado rico, para a música rock.

Do outro lado do oceano, na América, vicejavam a Rolling Stone e a Crawdaddy, nesta área específica, com alguma condescendência para a Creem. A Musician, apareceu muito depois, já nos anos oitenta. E as revistas específicas, sobre guitarras ( Guitar Player, em especial) ou sobre jazz ( Downbeat) não contam.

Por isso, é naquelas que encontramos alguns critérios, para a realização crítica, em tom musical.

Para entrarmos nos caminhos ínvios da crítica musical, é preciso falar de música. E como é possível falar de música, pergunta Charles M. Young, no número de Agosto de 1991, da revista Musician, sem escrever acerca dos aparatos da música, sem fazer alguams piruetas semióticas, desconstrutivas e centradas na pessoa dos próprios músicos que a executam?

A música popular, não atinge sofisticação técnica suficiente que obrigue ao estudo de pautas e contrapontos. Muitos músicos, aliás, nem sabem ler pautas e a noção de escalas ou acordes, adveio-lhes pela experiência própria, ouvindo outros músicos que disso nada sabiam : os negros do Mississippi.

Charles M. Young, traz um exemplo à colação: não se deve pedir ao crítico apenas concentração nos aspectos puramente musicais, assim com não se deve esperar de um Tolstoi uma escrita sobre a guerra e a paz, desligando o problema das pessoas que a fazem; ou de um Shakespeare, que deixe o palavreado sobre Hamlet, dedicando a prosa exclusivamente ao assunto da decadência das classes dominantes.

Ainda assim, Young, acha que escrever sobre música é um privilégio. E observar a reacção popular, na criação de alegria nos outros, através da música, confere um retorno idêntico, de satisfação garantida.

Portanto, escrever sobre música, leva poucas notas e muitos apontamentos à margem.

Numa vertente intelectual, um crítico serve-se de referências várias e alusões diversas, para conferir dimensão respeitável a meras opiniões, subjectivas, sobre o assunto que todos podem apreciar e alguns analisar, nas suas componentes.

Para definir de algum modo os termos da crítica musical, popular, em publicações a ela dedicadas, nada melhor do que isolar um músico e ler o que sobre ele e a sua obra escreveram os diversos críticos, de ambos os lados do Atlântico.

Tomemos o caso singular de Neil Young, um músico consensual e ao mesmo tempo respeitado pela crítica e pelo público.

Um dos críticos mais conceitiuados do meio, John Rockwell, do New York Times, definia assim a música de Neil Young, em 1977:

a quintessência do cowboy- hippie, solitário, um romântico indefectível em luta para contruir pontes de si para as mulheres e através destas, para os arquétipos cósmicos do mito e do passado.

Na Enciclopédia Ilustrada do Rock n´Roll, Janet Muslin, escrevia sobre Neil Young: “Com On the Beach de 1974 e Tonight´s n«the night e Zuma, ambos de 1975, a música progressivamente mais rudimentar, pouco mais fez do que reiterar o lado obscuro das suas letras. A sua renúncia ao artifício foi tão absoluta que não lhe deixou espaço tanto para o drama ou para a tensão.”

Em relação a estes dois escritos, verifica-se uma discordância imediata do crítico da Rolling Stone, Paul Nelson, (RS 11.8.1977) outro dos conceituados, que acrescenta, no mesmo passo, contrariando esta asserção opinativa:

Ora bem. Não. A menos que se compreenda a trilogia On the Beach/ Motion Pictures/Ambulance Blues, de On the Beach e Don´t be denied, de Times Fades away, não se poderá escrever de modo inteligente, sobre Neil Young. Mas logo que alguém compreenda estas canções, começa a perceber a possibilidade excitante de que talvez Young seja o primeiro ( e único) pós-romântico do rock n´roll.

Sobre Neil Young, Tony Palmer, no livro All you need is love, escreve…nada, para além de uma pequena legenda numa foto de página, dedicada aliás, aos CSN&Y.

Porém, a comparação das críticas do New Musical Express, e da Rock & Folk, sobre o mesmo disco de finais de 1977, Decade, uma recolha de temas de discos anteriores, permite de alguma forma perceber a diferença entre a crítica anglo-saxónica ( no caso, inglesa) e a francesa.













Este tipo de crítica, como pode classificar-se?

Dave Marsh, um dos crítico mais relevantes, na Rolling Stone, de 16.12.1976, depois de apontar os epígonos da crítica rock americana ( Robert Christgau, Jon Landau, Paul Nelson e o próprio Dave Marsh) escreveu um artigo sobre a “crítica aos críticos”, da música popular, onde dizia que “ pouca crítica rock respeita à música, porque a maioria dos críticos de rock, está menos preocupada com o som do que com a sociologia. Isso pode ter consequências deprimentes. Por exemplo, o sucesso de Springsteen, é definido em termos do seu culto crítico, imaginário punk, ou o seu dramatismo em palco. Raramente, alguém discute o seu uso inventivo da estrutura das canções ( múltiplas pontes, por exemplo) os seus extraordinários efeitos de guitarra ou o poder simples da sua voz. Mas há uma boa razão para isso. A maioria do rock não vale a pena a discussão, excepto como fenómeno, resultado do trabalho num formato restritivo. Mas isso, prejudica a crítica, quanto tudo é visto como um evento e nada como arte.

Ou um grande negócio...

Num livro de 1977, Rock n´Roll is here to pay, ( em português, traduzido pela Caminho, em 1989, como Rock & Indústria) , Steve Chapple e Reebe Garofalo, dedicam algumas páginas a explicar o que era a revista Rolling Stone, um dos epítomes da crítica do rock.

Uma revista, “sem dúvida autónoma”, mas que não poderia ser tão grande e tão poderosa, sem a quantidade de publicidade da indústria da música , que a sustenta. E apontavam a sua ligação óbvia ao poder económico, numa perspectiva crítica ao capitalismo que a revista representava sem qualquer rebuço, mesmo entre os seus melhores escribas ( Hunter S. Thomson).

Um aspecto curioso, relacionado com a revista Rolling Stone e referido no livro Rolling Stone Magazine- the uncensored history, de Robert Draper e do ano de 1990, prende-se com Bruce Springsteen, precisamente.

O crítico Jon Landau, amigo de Jann Wenner, fundador da Rolling Stone, e onde aquele, aliás também colaborava, escreveu num jornal de Boston, o Real Paper, I´ve seen rock n´roll future and its name is Springsteen”.

O disco que saiu com a colaboração de Landau, Born to Run, teve honra de capa simultaneamente, na Time e na Newsweek,... na mesma semana ( 27 Outubro 1975)! Mas não na Rolling Stone ...e a explicação segundo aqueles autores, prende-se com inveja, pura e simples.













A revista Crawdaddy, a primeira revista americana a aparecer no mercado, sobre a música popular, numa perspectiva crítica ( portanto, para além da Billboard e da Cashbox), publicou nessa altura, no número de Outubro de 1975, uma capa, com um desenho estilizado, da cara do artista e o título: a star is born to run. E dez páginas no interior, profusamente ilustradas, em tom laudatório, assinadas por Peter Knobler, precisamente o editor da revista.

A Rolling Stone, nem nesse ano, nem nos seguintes, dedicou uma capa sequer, a Bruce Springsteen. A primeira vez, que Springsteen, fez a capa da R.S. foi em Setembro de 1978, no número 272.

A crónica a Born to Run, apareceu no número de 9.10.1975, assinada por Greil Marcus, outro dos monstros sagrados da crítica, autor de um dos melhores livros sobre a música rock: Mistery Train, de 1975, precisamente.

Na crítica da revista, Greil Marcus, estende num artigo de página inteira, uma análise crítica, exemplar do estilo Rolling Stone.

No outro lado do Atlântico, a Rock & Folk, dedicava a sua abertura de crítica de discos, do número de Novembro de 1975, ao mesmo disco.

Que diferenças se podem capturar, nesta crítica, de meia- página , assinada por François Ducray, um dos peso- pesados da revista e naquelas duas, das revistasa americanas?

Que diferença estilística e de conteúdo se alcança nas duas escríticas?

Só lendo. E lendo, percebe-se logo porque prefiro os franceses a escrever sobre a música americana, do que estes no seu próprio meio. A riqueza de análise, salta para fora do microcosmos da cena americana e das comparações comuns, de Springsteen a Dylan. E as referências a outras paragens, alarga o imaginário crítico, ao escrítico francês.














É esta a principal razão, da minha preferência pela rock-crítica francesa: não ficar a mirar a larga paisagem americana ou a confinar-se ao ambiente do smog inglês.

O resto, delineado a preceito, remete para tudo o que um leitor crítico pode atingir em plano de igualdade com qualquer crítico: o gosto musical estrito e referido às notas das pautas.

A leitura das revistas sobre música popular, como sejam as apontadas, é um todo, em que a "leitura" das imagens, publicidade e arranjo gráfico, dos temas, se conjuga para dar um tom geral à publicação.

As entrevistas aos "artistas", por exemplo, assumem um lugar de relevo nestas publicações e são célebres as entrevistas de Jonathan Cott, da Rolling Stone. A entrevista a Bob Dylan que aquele fez, em 1978, para a R.S. poderia comparar-se com a entrevista de Craig Mcgregor, ao mesmo artista, em Abril de 1978 no New Musical Express, de 22 de Abril desse ano.

Para além das entrevistas, os artigos de fundo, sobre músicos e música, neste caso popular, assumem importância fundamental, quando abrangem géneros musicais ou artistas de relevo certo. Lembro-me dos artigos na Rock & Folk, sobre os Rolling Stones, sobre os Pink Floyd, Sobre os The Who; Steely Dan, Chicago, Cars, e muitos outros. Sobre os Beatles, por exemplo, no número de Novembro de 1976, um número especial e de grande impacto documental, sendo a primeira vez que tive oportunidade de ler algo sobre a obra completa dos Beatles, até então, com uma recensão crítica de todos os seus discos, com o esta que se deixa em imagem.













Em resumo, se fosse escolher qual a revista intelectualmente mais marcante, mas informativa, mas divertida até, no panorama musical do rock e do pop, nunca teria qualquer dúvida em afirmar que essa revista foi a Rock & Folk.

A Rolling Stone, tinha o glamour próprio das grandes americanas. A Crawdaddy, idem.

Porém, os ingleses, com os seus jornaizinhos semanais, embora de grande impacto na cena musical local, apesar de tudo, nunca lograram publicar artigos documentados ou ilustrativos daquilo que no fim de contas, constituia o seu património artístico, no campo da música popular.

Os franceses, encarregaram-se de fazer o trabalho estético por eles. Felizmente. E isso parece-me uma evidência que dispensa demonstrações elaboradas.


1 comentário:

Queirosiano disse...

Obrigado pela referencia - imerecida. Limitei-me a manifestar e preferencia, que mantenho, por um certo tipo de critica.
Seria deslocado responder com a exaustividade do excelente post, mas tomando precisamente o exemplo comparativo que ilustra o texto, e perfeitamente legitimo preferir a critica despojada do New Musical Express a espuma do Claude Pupin: o que e que significara, em termos de explicacao critica, "guitares mordantes, rytmique epileptique", por exemplo ? E certo que ajuda a encher, estilisticamente tem piada, em termos de substancia e irrelevante.

Derradeira nota: o exemplo do Ducray nao vale para refutar a minha posicao. Eu tinha ressalvado claramente que ele era, para mim, um dos criticos crediveis da Rock&Folk.