Uma das coisas que me interessa, nesta altura, é a discussão acerca dos modelos de magistratura que temos em Portugal e que poderemos vir a ter, em concertação com decisões jurisprudenciais recentes e outras de sempre que colocam a questão, sempre na ordem do dia:
Os magistrados, maxime os juízes, administram a justiça em nome de quê e de quem?
A seguir, transcreve-se um artigo publicado numa colectânea de comunicações apresentadas no Colóquio internacional "modelos de Formação e Carreiras Judiciárias", promovido pelo SMMP, em 2 e 3 de Outubro 2003.
José Joaquim Gomes Canotilho
Professor Catedrático da Faculdade
de Direito de Coimbra
§ 1° - As provocações não formam magistrados
O modo provocatório como prólogo de livros e colóquios parece estar in... Nada mais fácil neste Colóquio Internacional sobre Modelos de Formação e Carreiras Judiciárias do que estar na moda começando por palavras ásperas. Iremos ver que é preciso navegar para além das criticas e provocações.
Num recentíssimo artigo publicado na revista italiana Studium luris (revista dedicada às formações jurídicas), Giorgio Spangher (') começava assim:
"Affrontando recentemente i temi delia crisi delia giustizia penale è stato affermato che il piú basso livello di fiducia si registra in quei Paesi che presentano magistrature di tipo napoleonico, cioè con magistrati reclutati in giovane età, senza precendenti esperienze professionali, una forte separazione fra le professioni legali, un rapporto difficile con Ia política e, di recente, 1' istituzione di organi di auto-governo e una forte sindicalizzazione. È quindi evidente che questo modello di magistratura, che fino a oggi è prevalsa in Italia, è in crisi e non risponde alle ricl dei propri cittadini" (Guarnieri, Prima i giudici, poi le leggi, in Il 22 Ore, 6.1.2003).
Alguns anos antes, um outro autor - Alain Minc - num livro i conhecido (2) fazia afirmações ainda mais provocadoras quanto à formação de juízes.
"Os juízes são formados como os militares; são recrutados após o termo dos estudos e colocados numa caserna onde são formados por outros juízes como os militares são formados por outros militares”
Dentro dos quadrantes culturais portugueses, o Autor que, de forma mais incisiva, se pronunciou relativamente à formação e recrutar de magistrados foi Paulo Rangel. No livro intitulado Repensar o 1 Judicial (3) analisa o arquétipo de "juiz funcionário" que reconduz aos seguintes traços:
(1) integração orgânica no aparelho administrativo e burocrál
(2) recrutamento com base exclusivamente técnica;
(3) socialização profissional dentro da máquina judicial;
(4) ordenação interna hierarquizada, com carreira, disciplina e moções;
(5) inspecções internas e progressão com base no mérito/antiguidade:
(6) ingresso genérico e não para certo e determinado cargo.
A nossa posição relativamente a estas provocações está resumida na epígrafe: as provocações não formam magistrados. Repensar as instituições é sempre necessário, mas o mais difícil é avançar com propostas alternativas satisfatórias dentro dos quadros do Estado de Direito democrático e da nossa cultura judiciária. Neste sentido, o caminho que vou seguir nesta conversa é bastante diferente. A nossa tese fundamental, será esta: a formação dos magistrados não é indissociável da formação dos juristas em geral. Precisamente por isso devemos perguntar-nos se a montante da "crise do judiciário" não haverá outra "crise" tanto mais profunda que a da formação dos juízes. A nossa opinião é afirmativa. Vamos procurar explicitá-la.
§ 2° - A ruptura da articulação da teoria com a prática
Avançaria com o mote inspirador: o "schock" da prática e a miséria da metodologia jurídica. Um ponto que se nos afigura central na problematização das formações profissionais diz respeito à ruptura da teoria com a prática. Não deixa de ser significativo que a revista alemã Rechtstheorie (4) tenha dedicado um número especial a esta ruptura. Os organizadores deste número - Werner Krawietz e Martin Morlok - colocavam assim a questão: segundo o common sense dos juristas práticos (juízes, advogados) as teorias e os teoremas para a interpretação e aplicação das normas jurídicas que se ensinam a propósito da exposição das matérias de direito positivo são de fraco préstimo na vida quotidiana do direito e raras vezes são seguidas. Verificar-se-ia uma espécie de "schock-Praxis" traduzido na sensação profunda de que o trabalho diário dos juristas e o seu mundo do direito pertencem a outra galáxia do universo jurídico muito distanciada da dos metodologo-teóricos. Em sentido contrário, os académicos doutrinários acusam os juristas profissionais de esquecimento das regras hermenêutico-metodológicas elementares. Colocadas assim as coisas, é lógico que se pergunte: em que é que reside afinal o problema?
O problema reside, por um lado, na formação académica. Sabemos bem que o ensino não substitui os estágios profissionais e os estágios não substituem a vida. No entanto, deve perguntar-se se a qualificação profissional não depende, desde logo, de uma formação académica adequada. Neste contexto, observou-se acertadamente que no plano da metodologia e das teorias metódicas ensinadas nas faculdades se verificam duas transferências dos métodos e teorias para fora da realidade: (1) a metodologia e a metódica do caso pretende ter uma qualquer conexão com a prática mas raramente com a prática judicial; (2) a teoria dos métodos e as teorias jurídicas transferem para as teorias e, consequentemente, pouca influência podem ter quer na formação quer na prática judicial. Sendo assim, talvez se possa dizer que a ruptura da teoria com a prática seja, desde logo, da responsabilidade dos académicos. Mesmo quando estas teorias e métodos não estão completamente esquecidos. Verifica-se que os profissionais se defrontam sobretudo com o"trabalho do caso", com o trabalho em torno do Tatbestand ou da fattispecie que raras vezes mereceu reflexão teórico-prática apurada no plano dos estudos.
Se as metodologias académicas falham na sua aproximação à praxis, voltemo-nos para o plano da praxis judicial para verificarmos se aqui, pelo menos, se verifica algum impulso para a revivíficação da teoria e praxis. Aqui verifica-se que quem triunfa não é o método mas a aceitação da decisão judicial pelas instâncias judiciais - ganhando, assim, confiança institucional. O problema central reside aqui: a aceitação institucional por colegas e instâncias não significa bondade metódica da decisão ou decisão de grande qualidade (jurídica ou social). Decide-se no plano do poder e da autoridade do sistema judicial, mas isso não implica necessariamente nem justiça do caso concreto nem qualidade da decisão. De qualquer modo, e não obstante a diversidade das decisões, existe um certo consenso institucional entre o que é profissionalmente defensável e o que não é. Diríamos que o consenso e aceitação profissional assenta numa outra ideia de coerência das decisões intersubjectivamente testada. Como qualquer outro pensamento institucional, o pensamento judicial-profissional não é uma compreensão individual do direito e da aplicação do direito. Aqui radicam, porém, - ou podem radicar - alguns dos problemas da ruptura da teoria com a prática, agora do lado dos próprios práticos. A prática judicial tem como lógica intrínseca: concentrar-se exclusivamente nos aspectos do caso que se afiguram com relevância jurídica, com desprezo dos outros mundos da vida presentes no caso. Os profissionais tornam-se, assim, técnicos do direito, correndo o risco de se divorciar quer da "realidade da norma" quer da "realidade do caso". Bastarão esquemas de decisão processualmente correctos. Aproximamo-nos, assim, de uma questão decisiva para a a formação dos juristas, sobretudo dos magistrados. Como articular a teoria com a praxis, a partir da praxis judicial? A resposta aponta para uma arte da praxis jurídica (').
§ 3° - Para uma teoria das jurisprudências
Na sequência da problematização que vimos fazendo, é altura de vos apresentar algumas observações sobre observações que fornecerão o"pretexto" para vos falar em jurisprudências em vez de jurisprudência.
Propor-vos-ei uma breve suspensão reflexiva em torno de três jurispru¬dências:
(1) jurisprudência "multifuncionalista";
(2) jurisprudência "principialista";
(3) jurisprudência "precedentalista".
(1) Jurisprudência multicontextual
Colhemos este conceito num sugestivo artigo de Doris Lucke (6) intitulado: "Doxa e Prudentia: conflitos de racionalidade e problemas de comunicação como paradoxos jurídicos de profissionalização". Sob uma perspectiva sociológica, a jurisprudência multicontextual aponta para a indíspensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro (in) das situações de vida e das respectivas experiências primárias. Para isso, carecem de competência para uma comunicação multicultural que não se esgota no uso de linguagem profissional nem na interpretação profissionalizante da lei. Dir-se-ia, por outras palavras, que o código binário do direito justo-injusto carece de informações outras (de caríz sociológico, etnológico-jurídico) que lhe permitam captar a aceitação /não aceitação, adequação/não adequação das decisões jurídico-formais. Ainda por outra palavras, porventura mais expressivas: a prudentia jurídica, que outra coisa não é senão a arte de decidir em situações difíceis, só está em condições de se afirmar como prudentia se estiver atenta às exigências da aceitação dóxica. Isto significa estar atento a vontades, sentimentos, opiniões que, mesmo de forma indirecta, possam contribuir para o acesso à justiça.
Façamos acompanhar estes preâmbulos multicontextuais por observações sobre observações. Estamos a recordar-nos de uma discussão sobre a lei de saúde mental em que os profissionais da medicina sugeriram que as sentenças sobre internamento forçado fossem proferidas nos próprios hospitais. Estamos a recordar-nos de um debate sobre prisões preventivas em que um jovem juiz lembrou que muitos juízes não sabem o que é uma penitênciária.
Temos presente um apelo de um advogado sugerindo o "direito fundamental à fuga" se o juiz não tomasse em consideração, num juízo de avaliação prospectiva, as consequências dramáticas da imposição da medida de coacção mais excepcional.
(2) Jurisprudência principialista
Como o próprio nome indica, a jurisprudência principialista significa dizer o direito no caso concreto mediante a aplicação de princípios. Com isto, estamos a retomar uma aula que há alguns anos dirigimos no Centro de Estudos Judiciários. Nessa altura, uma jovem auditora duvidou da bondade jurisprudencial dos nossos ensinamentos. O discurso em torgo de princípios - disse ela - é encantatório mas traz uma enorme insegurança aos operadores jurídicos. Vale a pena retomar o diálogo aqui neste colóquio.
Os exemplos que fornecemos tinham tido enorme impacto nos meios políticos e sociais. Desde o "caso do crucifixo" na Alemanha até ao "caso Serena" na Itália, tentámos demonstrar que esses casos não são colocados logo em sede de Tribunais Constitucionais mas perante juízes de primeira instância.
Quando se fala de jurisprudência de princípios - convém aclarar este ponto - não significa que a jurisprudência deva desprezar as regras jurídicas, precisas e densas. Como incisivamente sublinhou um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão, Ernst Wolfgang Böckenförde, o direito não pode ser todo de princípios nem pode reduzir-se a regras. No entanto, quando se trata de aplicar os princípios do Estado de Direito, não há código que valha aos jovens juristas. Não há código em que se densifique totalmente este princípio. Quando está em causa o princípio da dignidade da pessoa humana, não vale a pena procurar a "chave silogística" para a aplicação deste princípio. Acontece, até, que o problema da aplicação de princípios não é apenas um problema de juristas práticos. Vale a pena referir um exemplo recentíssimo para demonstrar que todos nós estamos obrigados a um exercício quotidianamente renovado de compreensão de princípios. O caso é este. Em Fevereiro de 2003 aparecia a actualização do célebre comentário à Lei Fundamental Alemã de Maunz-Dürig, com um novo comentário ao art. 1/1 que, recorde-se, afirma a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana. O fundador do comentário (Dürig) nunca o tinha actualizado (desde 1958), permanecendo sempre a afirmação da dignidade da pessoa humana como fundamento de um "sistema de valores" constitutivo do ordenamento jurídico alemão. O novo comentador - de uma outra geração - viu-se obrigado a enfrentar o problema da dignidade da pessoa humana - os novos problemas suscitados pelos embriões excedentários e pela inseminação artificial, reconhecendo que os interesses terapêuticos e a liberdade de investigação trouxeram renovada insegurança quanto a este valor absoluto da dignidade da pessoa humana. É precisamente aqui que vem residir a objecção fundamental colocada por um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão (e já atrás citado). Num artigo publicado no jornal diário - o Frankfürter Allgemeine - entende que se expulsou o fundador do comentário. A dignidade valor absoluto é uma outra coisa diferente das "pretensões de dignidade". Compreender-se-á, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana continue o mesmo, mas os jovens juízes, tarde ou cedo, talvez tenham de decidir se a liberdade de investigação garantida pela Constituição justifica ou não a existência de embriões excedentários a que não se atribui um valor absoluto de dignidade da pessoa.
(3) A "jurisprudência precedentalista"
Num trabalho publicado em 1994, o jurista alemão R. Schmidt (') salientava uma inequívoca tendência na prática profissional dos juízes: positivismo jurisprudencial jurisdícional. Bastava ler os acórdãos mais recentes dos vários tribunais constitucionais (e, também, das sentenças do Tribunal de Justiça das Comunidades) para se concluir que, se, por um lado, se rejeita decididamente o amparo maiêutico das "grandes teorias" ("razão pública", "discurso racional", "integridade"), também, por outro lado, se evita qualquer abordagem sobre o método de interpretação-concretização do direito. E se não há teria nem método, o que há? A resposta é esta: positivismo jurìsprudencial jurisdicional. Instalou-se um "precedentismo metódico judicialmente fechado". Há, pois, prudentia
Sem scientia? Mas de que prudentia se trata? De leading cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial? Não! De "assentos" ou de "uniformizações de jurisprudência" propostas por tribunais superiores? Não! Impõe-se um programatismo do caso baseado noutras senten¬ças. A remissão de "sentenças para sentenças", o acolhimento de "dizeres anteriores", o "reenvio de acórdãos para acórdãos" pode significar, a nosso ver, a morte da própria jurisprudência. Juris dicere não é repetir o que outros decidiram noutros casos.
Chegamos assim, ao último tópico da nossa conversa. Na qualidade de teórico, e afivelando a máscara de professor, o que é que vos posso sugerir para a continuação do diálogo?
(1) Cfr. Giorgio Spangher, "Riforma dell'ordinamento giudiciario e Separazione delle carriere" in Studium Juris, 2003, p. 819.
(2) Cfr. Alain Mine, Au nom de Ia loi, Paris, 1998.
(3) Cfr. Paulo Castro Rangel, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos- Porto, 2001, p. 161.
(4) Cfr. Rechstheoie. Sonderheft. Juristische Methodenlehre (vol. 32, 2001), com o título Von Schritern und Wiedralebung juristischer Methodik im RechtsalLtag - ein Buch zwischen Theorie und Praxis?
(5) Algumas das ideias aqui expostas inspiraram-se no trabalho de Hans-Joachin Strauch, "Theorie - Praxis - Bruch - Aber wo liegt das Problem?", in Rechtstheorie, 32 (2001), p. 197 ss.
(6) Cfr. Doris Lucke, "Doxa und Prudentia: Rationalitátonkonflikte und Kommunikationprobleme ais Paradoxien rechtlicher Professionalisíerung", in Rechtstheorie, 3L (2001), p. 159 ss.
(7) Cf. R. Schmidt, "Grundrechte", in D. Simon (org.) Rechtswissenschaft in der Bonner Grundgesetz. Studien zur Wissenschaftsgeschàchte der Jurisprudenz, 1994, p. 209 ss.
Os magistrados, maxime os juízes, administram a justiça em nome de quê e de quem?
A seguir, transcreve-se um artigo publicado numa colectânea de comunicações apresentadas no Colóquio internacional "modelos de Formação e Carreiras Judiciárias", promovido pelo SMMP, em 2 e 3 de Outubro 2003.
José Joaquim Gomes Canotilho
Professor Catedrático da Faculdade
de Direito de Coimbra
§ 1° - As provocações não formam magistrados
O modo provocatório como prólogo de livros e colóquios parece estar in... Nada mais fácil neste Colóquio Internacional sobre Modelos de Formação e Carreiras Judiciárias do que estar na moda começando por palavras ásperas. Iremos ver que é preciso navegar para além das criticas e provocações.
Num recentíssimo artigo publicado na revista italiana Studium luris (revista dedicada às formações jurídicas), Giorgio Spangher (') começava assim:
"Affrontando recentemente i temi delia crisi delia giustizia penale è stato affermato che il piú basso livello di fiducia si registra in quei Paesi che presentano magistrature di tipo napoleonico, cioè con magistrati reclutati in giovane età, senza precendenti esperienze professionali, una forte separazione fra le professioni legali, un rapporto difficile con Ia política e, di recente, 1' istituzione di organi di auto-governo e una forte sindicalizzazione. È quindi evidente che questo modello di magistratura, che fino a oggi è prevalsa in Italia, è in crisi e non risponde alle ricl dei propri cittadini" (Guarnieri, Prima i giudici, poi le leggi, in Il 22 Ore, 6.1.2003).
Alguns anos antes, um outro autor - Alain Minc - num livro i conhecido (2) fazia afirmações ainda mais provocadoras quanto à formação de juízes.
"Os juízes são formados como os militares; são recrutados após o termo dos estudos e colocados numa caserna onde são formados por outros juízes como os militares são formados por outros militares”
Dentro dos quadrantes culturais portugueses, o Autor que, de forma mais incisiva, se pronunciou relativamente à formação e recrutar de magistrados foi Paulo Rangel. No livro intitulado Repensar o 1 Judicial (3) analisa o arquétipo de "juiz funcionário" que reconduz aos seguintes traços:
(1) integração orgânica no aparelho administrativo e burocrál
(2) recrutamento com base exclusivamente técnica;
(3) socialização profissional dentro da máquina judicial;
(4) ordenação interna hierarquizada, com carreira, disciplina e moções;
(5) inspecções internas e progressão com base no mérito/antiguidade:
(6) ingresso genérico e não para certo e determinado cargo.
A nossa posição relativamente a estas provocações está resumida na epígrafe: as provocações não formam magistrados. Repensar as instituições é sempre necessário, mas o mais difícil é avançar com propostas alternativas satisfatórias dentro dos quadros do Estado de Direito democrático e da nossa cultura judiciária. Neste sentido, o caminho que vou seguir nesta conversa é bastante diferente. A nossa tese fundamental, será esta: a formação dos magistrados não é indissociável da formação dos juristas em geral. Precisamente por isso devemos perguntar-nos se a montante da "crise do judiciário" não haverá outra "crise" tanto mais profunda que a da formação dos juízes. A nossa opinião é afirmativa. Vamos procurar explicitá-la.
§ 2° - A ruptura da articulação da teoria com a prática
Avançaria com o mote inspirador: o "schock" da prática e a miséria da metodologia jurídica. Um ponto que se nos afigura central na problematização das formações profissionais diz respeito à ruptura da teoria com a prática. Não deixa de ser significativo que a revista alemã Rechtstheorie (4) tenha dedicado um número especial a esta ruptura. Os organizadores deste número - Werner Krawietz e Martin Morlok - colocavam assim a questão: segundo o common sense dos juristas práticos (juízes, advogados) as teorias e os teoremas para a interpretação e aplicação das normas jurídicas que se ensinam a propósito da exposição das matérias de direito positivo são de fraco préstimo na vida quotidiana do direito e raras vezes são seguidas. Verificar-se-ia uma espécie de "schock-Praxis" traduzido na sensação profunda de que o trabalho diário dos juristas e o seu mundo do direito pertencem a outra galáxia do universo jurídico muito distanciada da dos metodologo-teóricos. Em sentido contrário, os académicos doutrinários acusam os juristas profissionais de esquecimento das regras hermenêutico-metodológicas elementares. Colocadas assim as coisas, é lógico que se pergunte: em que é que reside afinal o problema?
O problema reside, por um lado, na formação académica. Sabemos bem que o ensino não substitui os estágios profissionais e os estágios não substituem a vida. No entanto, deve perguntar-se se a qualificação profissional não depende, desde logo, de uma formação académica adequada. Neste contexto, observou-se acertadamente que no plano da metodologia e das teorias metódicas ensinadas nas faculdades se verificam duas transferências dos métodos e teorias para fora da realidade: (1) a metodologia e a metódica do caso pretende ter uma qualquer conexão com a prática mas raramente com a prática judicial; (2) a teoria dos métodos e as teorias jurídicas transferem para as teorias e, consequentemente, pouca influência podem ter quer na formação quer na prática judicial. Sendo assim, talvez se possa dizer que a ruptura da teoria com a prática seja, desde logo, da responsabilidade dos académicos. Mesmo quando estas teorias e métodos não estão completamente esquecidos. Verifica-se que os profissionais se defrontam sobretudo com o"trabalho do caso", com o trabalho em torno do Tatbestand ou da fattispecie que raras vezes mereceu reflexão teórico-prática apurada no plano dos estudos.
Se as metodologias académicas falham na sua aproximação à praxis, voltemo-nos para o plano da praxis judicial para verificarmos se aqui, pelo menos, se verifica algum impulso para a revivíficação da teoria e praxis. Aqui verifica-se que quem triunfa não é o método mas a aceitação da decisão judicial pelas instâncias judiciais - ganhando, assim, confiança institucional. O problema central reside aqui: a aceitação institucional por colegas e instâncias não significa bondade metódica da decisão ou decisão de grande qualidade (jurídica ou social). Decide-se no plano do poder e da autoridade do sistema judicial, mas isso não implica necessariamente nem justiça do caso concreto nem qualidade da decisão. De qualquer modo, e não obstante a diversidade das decisões, existe um certo consenso institucional entre o que é profissionalmente defensável e o que não é. Diríamos que o consenso e aceitação profissional assenta numa outra ideia de coerência das decisões intersubjectivamente testada. Como qualquer outro pensamento institucional, o pensamento judicial-profissional não é uma compreensão individual do direito e da aplicação do direito. Aqui radicam, porém, - ou podem radicar - alguns dos problemas da ruptura da teoria com a prática, agora do lado dos próprios práticos. A prática judicial tem como lógica intrínseca: concentrar-se exclusivamente nos aspectos do caso que se afiguram com relevância jurídica, com desprezo dos outros mundos da vida presentes no caso. Os profissionais tornam-se, assim, técnicos do direito, correndo o risco de se divorciar quer da "realidade da norma" quer da "realidade do caso". Bastarão esquemas de decisão processualmente correctos. Aproximamo-nos, assim, de uma questão decisiva para a a formação dos juristas, sobretudo dos magistrados. Como articular a teoria com a praxis, a partir da praxis judicial? A resposta aponta para uma arte da praxis jurídica (').
§ 3° - Para uma teoria das jurisprudências
Na sequência da problematização que vimos fazendo, é altura de vos apresentar algumas observações sobre observações que fornecerão o"pretexto" para vos falar em jurisprudências em vez de jurisprudência.
Propor-vos-ei uma breve suspensão reflexiva em torno de três jurispru¬dências:
(1) jurisprudência "multifuncionalista";
(2) jurisprudência "principialista";
(3) jurisprudência "precedentalista".
(1) Jurisprudência multicontextual
Colhemos este conceito num sugestivo artigo de Doris Lucke (6) intitulado: "Doxa e Prudentia: conflitos de racionalidade e problemas de comunicação como paradoxos jurídicos de profissionalização". Sob uma perspectiva sociológica, a jurisprudência multicontextual aponta para a indíspensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro (in) das situações de vida e das respectivas experiências primárias. Para isso, carecem de competência para uma comunicação multicultural que não se esgota no uso de linguagem profissional nem na interpretação profissionalizante da lei. Dir-se-ia, por outras palavras, que o código binário do direito justo-injusto carece de informações outras (de caríz sociológico, etnológico-jurídico) que lhe permitam captar a aceitação /não aceitação, adequação/não adequação das decisões jurídico-formais. Ainda por outra palavras, porventura mais expressivas: a prudentia jurídica, que outra coisa não é senão a arte de decidir em situações difíceis, só está em condições de se afirmar como prudentia se estiver atenta às exigências da aceitação dóxica. Isto significa estar atento a vontades, sentimentos, opiniões que, mesmo de forma indirecta, possam contribuir para o acesso à justiça.
Façamos acompanhar estes preâmbulos multicontextuais por observações sobre observações. Estamos a recordar-nos de uma discussão sobre a lei de saúde mental em que os profissionais da medicina sugeriram que as sentenças sobre internamento forçado fossem proferidas nos próprios hospitais. Estamos a recordar-nos de um debate sobre prisões preventivas em que um jovem juiz lembrou que muitos juízes não sabem o que é uma penitênciária.
Temos presente um apelo de um advogado sugerindo o "direito fundamental à fuga" se o juiz não tomasse em consideração, num juízo de avaliação prospectiva, as consequências dramáticas da imposição da medida de coacção mais excepcional.
(2) Jurisprudência principialista
Como o próprio nome indica, a jurisprudência principialista significa dizer o direito no caso concreto mediante a aplicação de princípios. Com isto, estamos a retomar uma aula que há alguns anos dirigimos no Centro de Estudos Judiciários. Nessa altura, uma jovem auditora duvidou da bondade jurisprudencial dos nossos ensinamentos. O discurso em torgo de princípios - disse ela - é encantatório mas traz uma enorme insegurança aos operadores jurídicos. Vale a pena retomar o diálogo aqui neste colóquio.
Os exemplos que fornecemos tinham tido enorme impacto nos meios políticos e sociais. Desde o "caso do crucifixo" na Alemanha até ao "caso Serena" na Itália, tentámos demonstrar que esses casos não são colocados logo em sede de Tribunais Constitucionais mas perante juízes de primeira instância.
Quando se fala de jurisprudência de princípios - convém aclarar este ponto - não significa que a jurisprudência deva desprezar as regras jurídicas, precisas e densas. Como incisivamente sublinhou um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão, Ernst Wolfgang Böckenförde, o direito não pode ser todo de princípios nem pode reduzir-se a regras. No entanto, quando se trata de aplicar os princípios do Estado de Direito, não há código que valha aos jovens juristas. Não há código em que se densifique totalmente este princípio. Quando está em causa o princípio da dignidade da pessoa humana, não vale a pena procurar a "chave silogística" para a aplicação deste princípio. Acontece, até, que o problema da aplicação de princípios não é apenas um problema de juristas práticos. Vale a pena referir um exemplo recentíssimo para demonstrar que todos nós estamos obrigados a um exercício quotidianamente renovado de compreensão de princípios. O caso é este. Em Fevereiro de 2003 aparecia a actualização do célebre comentário à Lei Fundamental Alemã de Maunz-Dürig, com um novo comentário ao art. 1/1 que, recorde-se, afirma a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana. O fundador do comentário (Dürig) nunca o tinha actualizado (desde 1958), permanecendo sempre a afirmação da dignidade da pessoa humana como fundamento de um "sistema de valores" constitutivo do ordenamento jurídico alemão. O novo comentador - de uma outra geração - viu-se obrigado a enfrentar o problema da dignidade da pessoa humana - os novos problemas suscitados pelos embriões excedentários e pela inseminação artificial, reconhecendo que os interesses terapêuticos e a liberdade de investigação trouxeram renovada insegurança quanto a este valor absoluto da dignidade da pessoa humana. É precisamente aqui que vem residir a objecção fundamental colocada por um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão (e já atrás citado). Num artigo publicado no jornal diário - o Frankfürter Allgemeine - entende que se expulsou o fundador do comentário. A dignidade valor absoluto é uma outra coisa diferente das "pretensões de dignidade". Compreender-se-á, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana continue o mesmo, mas os jovens juízes, tarde ou cedo, talvez tenham de decidir se a liberdade de investigação garantida pela Constituição justifica ou não a existência de embriões excedentários a que não se atribui um valor absoluto de dignidade da pessoa.
(3) A "jurisprudência precedentalista"
Num trabalho publicado em 1994, o jurista alemão R. Schmidt (') salientava uma inequívoca tendência na prática profissional dos juízes: positivismo jurisprudencial jurisdícional. Bastava ler os acórdãos mais recentes dos vários tribunais constitucionais (e, também, das sentenças do Tribunal de Justiça das Comunidades) para se concluir que, se, por um lado, se rejeita decididamente o amparo maiêutico das "grandes teorias" ("razão pública", "discurso racional", "integridade"), também, por outro lado, se evita qualquer abordagem sobre o método de interpretação-concretização do direito. E se não há teria nem método, o que há? A resposta é esta: positivismo jurìsprudencial jurisdicional. Instalou-se um "precedentismo metódico judicialmente fechado". Há, pois, prudentia
Sem scientia? Mas de que prudentia se trata? De leading cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial? Não! De "assentos" ou de "uniformizações de jurisprudência" propostas por tribunais superiores? Não! Impõe-se um programatismo do caso baseado noutras senten¬ças. A remissão de "sentenças para sentenças", o acolhimento de "dizeres anteriores", o "reenvio de acórdãos para acórdãos" pode significar, a nosso ver, a morte da própria jurisprudência. Juris dicere não é repetir o que outros decidiram noutros casos.
Chegamos assim, ao último tópico da nossa conversa. Na qualidade de teórico, e afivelando a máscara de professor, o que é que vos posso sugerir para a continuação do diálogo?
(1) Cfr. Giorgio Spangher, "Riforma dell'ordinamento giudiciario e Separazione delle carriere" in Studium Juris, 2003, p. 819.
(2) Cfr. Alain Mine, Au nom de Ia loi, Paris, 1998.
(3) Cfr. Paulo Castro Rangel, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos- Porto, 2001, p. 161.
(4) Cfr. Rechstheoie. Sonderheft. Juristische Methodenlehre (vol. 32, 2001), com o título Von Schritern und Wiedralebung juristischer Methodik im RechtsalLtag - ein Buch zwischen Theorie und Praxis?
(5) Algumas das ideias aqui expostas inspiraram-se no trabalho de Hans-Joachin Strauch, "Theorie - Praxis - Bruch - Aber wo liegt das Problem?", in Rechtstheorie, 32 (2001), p. 197 ss.
(6) Cfr. Doris Lucke, "Doxa und Prudentia: Rationalitátonkonflikte und Kommunikationprobleme ais Paradoxien rechtlicher Professionalisíerung", in Rechtstheorie, 3L (2001), p. 159 ss.
(7) Cf. R. Schmidt, "Grundrechte", in D. Simon (org.) Rechtswissenschaft in der Bonner Grundgesetz. Studien zur Wissenschaftsgeschàchte der Jurisprudenz, 1994, p. 209 ss.
4 comentários:
Caro José:
Subscrevo totalmente as palavras de Gomes Canotilho quando diz que a crise na formação dos magistrados é inseparável da formação jurídica em geral, e arrisco dizer de quase tudo. O meu diagnóstico não pretende ser apocalíptico nem “vaidoso”.
Enquanto recém licenciado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, creio estar no momento certo para avaliar a formação que é dada em geral nas faculdades de Direito.
A minha tese é de certo modo radical: A formação dada nas faculdades não compensa falta de jeito, de método ou de bom senso, quer em Direito, quer na maior parte das áreas. Isto é, o trabalho que é feito pela maioria dos advogados poderia ser igualmente desempenhado por uma pessoa com uma formação não jurídica integrada numa sociedade ou escritório de advogados.
Em conversa com muitos colegas de Direito, apercebo-me de uma crítica comum: “O Curso é pouco prático!” “Só estudamos Teoria!” Ou ainda, “Estudamos tantas matérias inúteis” (como a História, a Filosofia, a Sociologia, a Economia...).
Certo! Mas são estes mesmos colegas que não conseguem resolver um único caso prático, aqueles que perguntados no 5º ano sobre o que é uma portagem, respondem que é a casota com a picota. Aqueles que sentem muitas dificuldades nos primeiros tempos de escritório ou acham que só se aprende na vida prática.
Tudo muito bem, mas para tal não é preciso o curso! Bastariam 2/3 anos e estágio nas profissões jurídicas. De preferência tudo muito especializado para evitar queixas do género.
Creio que a maior e central falha do ensino do Direito, se prende com um dos problemas abordados por Canotilho, a adequação teórico-prática. Mas esclareça-me, o Direito não é adequação ao caso? É só isso, ao Caso e ao restante da Ordem Jurídica! Ora se as faculdades não conseguem transmitir isso, que fazem elas? Como é que (caso real) 99% dos alunos responde em Direito Administrativo a um caso de Direito Privado como se fosse Direito Administrativo só porque essa era a cadeira? Ou porque é que perante um exame de Direito das Obrigações, também 95% dos alunos escreve na primeira frase que este é um caso de Direito das Obrigações, sem mais. Ora isto tudo resulta da falta de método! O método, atenção não é tudo, mas é certamente o que distingue o discurso do Direito. O que sinto é que se fizer agora um doutoramento e voltar à advocacia, um Doutoramento em Filosofia me é tão útil como um em Direito Comercial, creio porque adquiri as capacidades para analisar o Direito, e não apenas o Direito positivo. De resto de que serve estudar Direito do Consumo na Faculdade? ou Direito da Contabilidade ou todas as outras cadeiras começadas por Direito? Na realidade, acho que há um número óptimo de cadeiras destas a ser feitas, depois de ultrapassado este, nada se retira de novo, que não possa ser retirado autonomamente. Direito do Consumo passará a dar uma vez mais acesso às suas fontes e leis, Direito do Trabalho à história, às fontes...Não condeno quem as faça (eu fiz Direito do trabalho), apenas creio que muitas cadeiras de opção são importantes para desenvolver o raciocínio do estudante e fazê-lo sentir que a lei não é sagrada, nem é tudo. Que interiorizar o raciocínio económico pode ajudar a perceber porque é que o vinculismo no arrendamento destrói o propósito da sua intervenção: o mercado ajusta-se subindo as rendas e imobilizando o mercado das mesmas...
Tenho dúvidas que trabalhar casos práticos como se faz hoje traga grandes proveitos à futura vida prática, porque não são em número suficiente para que se adquira um método e uma abordagem estável. Não sei sinceramente se um ensino teórico em que se percebesse o que está por detrás do raciocínio jurídico não produziria os seus frutos. Relembro o meu estágio de Verão em que sempre senti um à vontade grande (salvo em escrever petições por falta de gosto) em boa parte pela minha vasta cultura teórica. Creio que olear a mente no Direito é olear a analogia, a abertura do raciocínio a casos sem solução expressa mas com “qualquer coisa em comum”.
Portanto, muitas vezes creio que nas aulas e mesmo nas conferências não se faz nem uma nem outra coisa. Por exemplo num seminário em 2006 sobre o Arrendamento Urbano na Nova, deu para perceber que grande parte dos advogados confundem conceitos e noções estruturantes de processo civil e direitos reais, entre outros; o que afecta a sua compreensão dos casos. Mas os professores muitas vezes baixam o nível das suas intervenções caindo num mar de banalidades e nenhuma utilidade prática porque a abastração é tão grande que de nada serve sem se ganhar ainda com complexidade científica. Aliás se reparar, nenhum manual português responde às questões teórico-práticas mais relevantes, o que enquanto aluno me fez sentir muitas vezes incompetente, até me emancipar dessa pretensa “autoridade”.
Exemplo: Abordo agora num trabalho a questão da excessiva onerosidade da prestação do Devedor Inadimplente na empreitada. Linhas escritas sobre o assunto...3, 4. Apesar das milhares sobre obrigações em geral.
Exemplo2: Lê um matéria qualquer, em regra o debate do Direito está parado. Os artigos dizem todos a mesma coisa e referem-se entre si. Lembro-me de um trabalho que fiz sobre garantias, cauções, seguros num contrato de concessão! O grau de profundidade dos artigos é todo igual, sobretudo na adequação teoria – prática.
Por agora é tudo.
Se quiser e tiver tempo, envio-lhe o texto de um trabalho sobre os julgados de Paz, que fiz. Nenhuma das minhas observções foi aproveitada, quer por um professor, quer pelo Conselheiro Cardona Ferreira que foi o convidado nessa aula e “abriu fogo” à nossa intervenção. Obviamente, que tal seria plágio, mas poderia ter sido o mote, talvez, porque foi reconhecida originalidade ao trabalho pelo próprio. Em vez disso, tem já uma dúzia de artigos sobre os julgados de paz e 2 ou três teses que continuam com o discurso tradicional da proximidade e de justiça diferente.
Cumprimentos.
Caro Guilherme:
São muitas as vias de discussão que abre no seu comentário, mas centro-me numa apenas: a qualidade do ensino do Direito nas faculdades portuguesas.
Não saberia dizer-lhe se é melhor ou pior do que há trinta anos atrás, quando comecei.
Tenho já uma filha que o ano passado aventurou-se numa faculdade de Direito e...não gostou. E sendo boa aluna, não foi por capricho ou facilitismo.
Contou-me histórias de um ou outro professor que são incríveis e também inadmissíveis. Professores precisamente do género daqueles que colocam ênfase no ensino estritamente teórico e com incidência particular na filosofia do Direito, apresentada de modo incompreensível ( isso foi-me dado ver, através do enunciado dos testes e de algumas lições).
Antes dela escolher a faculdade para onde foi, disseram-me que a Nova actualmente seria a melhor faculdade de Direito do país, por causa do aspecto prático do ensino.
Não sei se é assim, ou não. espero que não, mas V. diz que sim...
Quanto a mim, nesta matéria, limito-me a copiar aquilo que Marcello Caetano dizia e que transcrevi no texto acima:
“ na verdade o importante para a formação do homem de Direito não é tornar-se reportório vivo dos diplomas vigentes, mas possuir os quadros científicos, conhecer os princípios dominantes, ter bem presente uma nomenclatura.”
Estou certo que estes problemas hão-de ser equacionado nas nossas faculdades, mas parece-me que as mesmas pararam no tempo.
E não vai ser nos blogs que tal discussão se fará. Disso estou certo.
José:
De forma alguma pretendia dizer que a Nova fosse a melhor. Creio que Nova, Clássica, Católica, Coimbra estarão ao mesmo nível. Provavelmente o Minho também. Mas há essa diferença de formação salientada inclusive pelos empregadores. Creio que não devemos ter medo de perfis de formação diferentes. Um aluno da Nova, é habitual dizer-se num escritório, é mais ágil com os materiais e fontes jurídicas, mais capaz de recorrer a todos os meios. Mas também lhe digo que de Coimbra e Clássica, os alunos saem com tudo na ponta da língua, ensino mais rico doutrinariamente e mais mnemónico. Essencialmente mais do que a qualidade em abstracto ou em todos os domínios precisamos começar a olhar para os traços que distinguem as faculdades. Por exemplo, o Reitor de Stanford, EUA, declarou que não obstante a sua faculdade estar no top 5, era preciso ver que nos EUA qualquer faculdade teria qualquer coisa a oferecer a alguém. Por isso Virginia, Ohio e tantas outras que não conhecemos são as melhores em nichos como Direito Internacional ou Propriedade Intelectual. isso não é desprimor.
Recomendo-lhe, já que falamos de qualidade, a passar pelo site da Católica, faculdade de Direito, e observar o programa bombástico de dimensão internacional que arrancará para o ano (pós-Bolonha). é estranho ver uma licenciatura com cadeiras como Parcerias Público-Privadas, Concessões, Energia, Telecomunicações, Expropriações, Direito Administrativo Europeu, só no Direito Administrativo.
Cumprimentos
As últimas palavras de Guilherme sobre os "perfis de formação" parece-me muito pertinente. A minha experiência, quando fui aluno na FDUC, rapidamente me fez perceber que as questões eram colocadas ao aluno sob um ponto de vista, por assim dizer, "judicativo"; ou seja, viradas para a decisão, antes que para a argumentação. Penso que não incorrerei em erro se disser que isto, no fim de contas, marca clivagem mais ou menos nítida entre um modo anglo-saxónico(tónica na argumentação) e um modo franco-alemão (tónica na decisão) de pensar o Direito. Entre nós já dava conta disto, há 11 anos, o Prof. Faria Costa ["O Papel da Universidade na Formação dos Juristas (advogados) (Brevíssima apreciação crítica", BFDUC, LXXII, 1996, p. 411 e ss.)]: "É bom, por outro lado, não esquecer que se a representação do pensamento anglo-saxónico, espelhada na construção que tem mantido na prática e no ensino do direito, é, primacialmente, dirigida à argúcia argumentativa que a noção de lide convoca (...), já o ensino sistemático do direito, quer na visão humboldtiana de raiz germânica, quer ainda na mais hierática percepção da mundividência universalitária napoleónica, é confrontado com um percurso de aprendizagem das disciplinas jurídicas que se mostra sempre mais virado para a decisão, para a decisão do caso concreto, do que para a lide, quer seja esta vista substancialmente, quer seja olhada na simbologia formal de uma retórica desprovida de sentido." Isto talvez explique as diferenças hoje existentes entre a Nova (que julgo ter como referência um modelo anglo-saxónico) e as demais Faculdades citadas.
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